“Tá se achando feio? Autoestima lá embaixo? Ah, vem pra Rondônia!”


resumo resumo

Ilka de Oliveira Mota



1. Introdução

O estado de Rondônia e seus cidadãos vêm sendo significados pejorativamente em discursos humorísticos e jocosos que circulam em diferentes mídias (MOTA; GINACH, 2017). A internet, enquanto espaço material de produção de sentidos, é lugar privilegiado de sua circulação.

Esse modo de significação jocosa e humorística atravessa os dois recortes que constituem o presente de pesquisa, a saber: o primeiro, um trecho do stand-up comedy do humorista Rafinha Bastos e o segundo, um texto retirado de um site intitulado “Desciclopedia sobre Rondônia e seus habitantes”: uma espécie de enciclopédia às avessas. Noutros termos, quanto à natureza discursiva de tais recortes, o primeiro é caracterizado por ser um sketch de stand-up comedy, já o segundo é uma paródia do gênero enciclopédia (Wikipédia), ambas as materialidades têm circulação online.

Vale dizer que são textos dos quais irrompem sentidos preconceituosos sobre o estado rondoniense e seus cidadãos a partir da mobilização, em grande parte, das peculiaridades regionais que caracterizam a região nortista: população indígena, clima e floresta tropical, distância geográfica dos grandes centros urbanos, economia fortemente agrária, entre outras. Voltaremos a essa questão mais adiante.

No campo da comicidade, há uma recorrência significativa de textos - orais e verbo-visuais – que apontam para um processo discursivo que significa o estado de Rondônia a partir de uma região de interpretação determinada. O objetivo aqui é explicitar os efeitos de sentidos das representações imaginárias que atravessam as aludidas materialidades e compreender os processos discursivos que as constituem. Além de categorias da Análise de Discurso (ORLANDI, 1999, 2001; PÊCHEUX, 1988), são mobilizados conceitos advindos da teoria freudiana do cômico (FREUD, 1989).

Em um estudo como esse, filiado à perspectiva discursiva, o texto é considerado em sua materialidade linguístico-histórica. Aqueles textos passíveis de formulação são remetidos a um discurso produzido em determinadas condições de produção atravessadas por formações ideológicas e imagens construídas na história. Para o analista, o objetivo é compreender como o discurso funciona, produz sentidos, nessas condições.

Acreditamos que, para o objetivo desse trabalho, será fundamental discorrer sobre a especificidade do lugar de onde enunciamos e o funcionamento da comicidade via Freud (1905). Começaremos por este último.

 

2. O campo da comicidade

Como já afirmamos, apoiamo-nos nos estudos de Freud (1905) para compreender a especificidade do funcionamento discursivo do campo da comicidade. O autor reconhece que o campo da comicidade, enquanto uma prática de linguagem, apresenta três subdivisões: o chiste, o cômico e o humor. Recorrendo a recursos expressivos constitutivos da própria estrutura significante do sistema linguístico (duplicidade, ironia, ambiguidade, equívoco, trocadilhos, jogos de palavras, entre outros), e do sistema imagético (desenho, caricatura, palavras iconizadas, palavras onomatopaicas), o campo da comicidade atesta, pois, o caráter oscilante da língua(gem), desestabilizando-a das estruturações lógico-matemáticas a que ela, muitas vezes, é submetida (FERREIRA, 2000).

Importa dizer que o campo da comicidade, como bem sinalizou o mestre da Psicanálise, está intimamente relacionado ao prazer, à fruição: esta é uma regularidade que atravessa as aludidas subclasses. Ele apresenta, em sua constituição, um funcionamento estético específico, na medida em que trata de questões existenciais, entre outras, constitutivas da subjetividade, através de um modo especial de elaboração dos sentidos. Mais precisamente, o campo da comicidade traz em seu bojo processos, considerados estéticos (EAGLETON, 1993), tais como técnicas e procedimentos iguais ou similares ao funcionamento do inconsciente (condensação e deslocamento, por exemplo), capazes de afetar os sentidos de um modo peculiar. É por isso mesmo, como Freud (1905) bem mostrou, o humor não é uma mera brincadeira”; ele implica, pois, relões subjetivas, sociais e culturais. Ele é arma” e defesa da subjetividade.

Ao afirmar isso, não negamos que o humor não está relacionado ao lúdico; assumimos, nesta pesquisa, que mesmo esse seu lado lúdico não faz dele mera brincadeira”, fruto de uma imaginação ingênua ou de pura descontração sem implicações para a constituição dos sujeitos e dos sentidos. Numa abordagem psicanalítico-discursiva do humor, há relões subjetivas, sócio-histórico-ideológicas implicadas na produção do prazer e da poeticidade cômicas.

 

2.1 As subdivisões do campo da comicidade: chiste, humor e cômico

As reflexões propostas por Sigmund Freud são extremamente profícuas para compreender as implicações discursivas (subjetivas, culturais e sociais) que atravessam o campo da comicidade. Não é à toa que essa reflexão foi retomada, ao menos em parte (é o caso dos chistes), por Michel Pêcheux. Associando cada tipo de comicidade a processos subjetivos específicos, Freud fez diferenciões (cômico, chiste e humor), delineando seus traços principais, que se mostraram profícuos para a análise de nosso corpus. Tais reflexões têm nos permitido compreender os diferentes tipos de comicidade em cada caso, analisando seu funcionamento discursivo.

Em nosso caso, é fundamental compreender as implicações discursivas do campo da comicidade no processo de construção de um saber sobre Rondônia e seu povo, ainda que seja um saber às avessas produzido por meio do deboche, da caricatura, em uma palavra: do humor. Assim sendo, a inclinação do olhar para tais implicações mostra-se importante para a compreensão do funcionamento discursivo e a produção de sentidos para o referido estado e seus habitantes.

Para Freud (1905), ao mesmo tempo em que o campo da comicidade traz em seu interior o gracejo e o prazer, ele é lugar de desejo e poder. Dependendo das condições de sua produção, ele pode dar lugar a sentimentos relacionados à hostilidade e à agressividade.

Como é sabido, trata-se de um campo do qual é possível distinguir três subclasses: o chiste, o cômico e o humor. O chiste é caracterizado pelo jogo de palavras, o que pode gerar prazer, fruição. Já o cômico caracteriza-se pelo rebaixamento do outro; nele funciona uma espécie de lente de aumento nos defeitos da alteridade. Finalmente no humor o enunciador extrai prazer de sua própria dor (tira prazer de seu afeto doloroso), ou seja, o humor é produzido com a própria situação.

De acordo com Freud, especificamente no que tange ao funcionamento dos chistes, eles têm como característica basilar o fato de “serem manifestações do inconsciente, formas de escapar da repressão e do controle.” (POSSENTI, 2010, p. 136).

Importa dizer que o campo da comicidade tende à produção do riso. Em grande medida, ele se dá quando regras preestabelecidas são rompidas e quando se infringem normas linguísticas e sociais (GIL, 1995). Possenti (2010) atenta para o fato de que não é o tema que gera o riso, mas o modo como é produzido, isto é, sua técnica: “[...] nenhum tema é, por si mesmo, criador de riso”, o que o provoca, continua o autor, “deriva da técnica, não do conteúdo do texto humorístico.” (POSSENTI, 2010, p. 140).

Os textos humorísticos não difundem discursos novos, mas exploram, isto sim, concepções ou fatos sociais já disseminados em nossa sociedade. Deles emergem, de forma específica, discursos correntes, como bem assevera Possenti (2010, p. 82), a partir de um contexto de produção específico. A partir da afirmação de Foucault (1971, p. 28), qual seja “o novo não está naquilo que é dito, mas no acontecimento de seu retorno”, interessa-nos compreender os processos de significação produzidos para Rondônia a partir da retomada de certos sentidos naturalizados.

Discursivamente poderíamos dizer que o campo da comicidade expõe as disputas, as lutas de classe, as contradições que caracterizam a nossa sociedade. Ou seja, na ordem do discurso cômico os embates, antagonismos e identificações (filiações) são expostos de um modo particular, revelando formações discursivas e posições de sujeito passíveis de serem compreendidas à luz do discurso.

 

3. Sentido, interpretação e formação discursiva

Discursivamente o sentido é concebido como relação a, o que implica, em outros termos, que, longe de estar colado às palavras ou às imagens, o sentido é determinado pelas posições dos sujeitos na história ou, como geralmente afirmamos, posição-sujeito. Neste sentido, as palavras “depreendem” seu sentido dessas posições e, por extensão, as imagens igualmente.

A noção de formação discursiva é fundamental para que o analista de discurso, a partir de sua escuta e da pergunta norteadora da pesquisa, possa compreender o funcionamento da linguagem. A formação discursiva constitui-se como uma região de sentidos, região de interpretação, que determina o que pode e deve ser dito. Como bem ensina Orlandi (1999, p. 43),

 

as formações discursivas, por sua vez, representam no discurso as formações ideológicas. Desse modo, os sentidos sempre são determinados ideologicamente. Não há sentido que não o seja. Tudo que dizemos tem, pois, um traço ideológico em relação a outros traços ideológicos. E isto não está na essência das palavras, mas na discursividade, isto é, na maneira como, no discurso, a ideologia produz seus efeitos, materializando-se nele. (ORLANDI, 1999, p. 43).

 

A mobilização do conceito de formação discursiva na análise pode contribuir para a compreensão do processo de produção dos sentidos, a sua relação com a ideologia e permitir, ainda, que o analista de discurso estabeleça regularidades no funcionamento discursivo.

Diferentemente de ocultação de ideias ou inversão da realidade, a ideologia é material, ela é um mecanismo que produz evidências do sujeito e dos sentidos. Pêcheux (1988, p. 160) a compreende nos seguintes termos:

 

 

[...] a ideologia fornece as evidências pelas quais ‘todo mundo sabe’ o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve etc., evidências que fazem com que uma palavra ou enunciado ‘queiram dizer o que realmente dizem’ e que mascaram, assim, sob a ‘transparência da linguagem’, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados.”

 

Noutros termos, a ideologia é um mecanismo imaginário através do qual se coloca para o sujeito, conforme as posições sociais que ocupa, um dizer já dado, um sentido que lhe aparece como evidente para ele enunciar daquele lugar e não de outro. A partir desse mecanismo, temos o seguinte: além de o sujeito ter a ilusão de ser uno e senhor dos sentidos que produz, parece-lhe natural ocupar a posição social em que está inserido.

Explorando Althusser, Pêcheux (1988) depara-se, nas teorizações do autor sobre o ritual, a falha como possibilidade de resistência. Neste sentido, a interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia é passível de falha, ou seja, há brechas na interpelação ideológica graças à inscrição da língua na história para significar. Vale dizer que a falha aí é compreendida como constitutiva: eis o impossível do fechamento dos sentidos.

 

3.1 Condições de produção e o imaginário de Rondônia

Ao analisar o humor sobre Rondônia e seus habitantes na consideração das condições materiais de existência do Estado incorremos igualmente no risco de uma chatice que, para nós, é necessária.

Discursivamente, os sujeitos e os sentidos são construções simbólicas e históricas, produzidas em condições específicas, como bem nos ensina Orlandi (1999). Nessa via, os sentidos de Rondônia e rondoniense têm ligação com as particularidades da história do estado. Como formula a autora (2004, p. 11), “Em suas inúmeras e variadas dimensões: material, cultural, econômica, histórica, etc., o corpo social e o corpo urbano formam um só”. No caso em análise, trata-se de um Estado que tem, portanto, traços rurais muito fortes.

A noção de condições de produção é fundamental para a compreensão do funcionamento da linguagem. Elas compreendem o contexto imediato (aqui agora) e o contexto mais amplo, que incluem o contexto sócio-histórico e ideológico (ORLANDI, 1999, p. 30-31).

No processo de significação atravessa uma série de representações imaginárias que constituem os sujeitos na história. Isso porque o imaginário faz parte do funcionamento da linguagem. Como afirma Orlandi (1999, p. 42), ele não surge do nada: “assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder”. Como parte constitutiva do processo de interpretação, a imagem que temos de um Estado, por exemplo, se constitui no confronto do simbólico com o político, em processos que ligam discursos e instituições, parafraseando Orlandi (1999).

Localizada na Amazônia brasileira, o estado de Rondônia faz fronteira com os estados do Amazonas, Acre e Mato Grosso e de outro país, a Bolívia. Sua população é formada por um número expressivo de migrantes de diversas partes do Brasil, mas ainda conta com uma grande variedade de povos indígenas (SANTOS, 2014). Na economia, as atividades de maior relevância são a agricultura e a pecuária, o chamado agronegócio (MOTA; GINACH, 2017).

Todas essas condições materiais de existência do estado fizeram com que Rondônia fosse significada, no plano do imaginário, como estado selvagem, rural e precário, e os rondonienses, como rudes, tanto em representações feitas pelos próprios rondonienses como em discursos de pessoas de fora do estado. Na internet, essas imagens comparecem em Youtube, sites, memes etc. No caso deste último, em trabalho anterior (cf. MOTA; GINACH, 2017), analisamos memes cômicos que mobilizam sentidos de gênero e da oposição rural/urbano para valorizar o rondoniense, o que tem resultado na produção de um discurso nomeado por nós de Discurso do Orgulho Rondoniense (DOR). Ou seja, trata-se de um discurso cujo funcionamento assenta-se na ressignificação dos sentidos cômicos e pejorativos sobre os rondonienses em um modo positivo, valorativo.

 

3.2 Sketch do stand up comedy de Rafinha Bastos

O recorte discursivo abaixo traz um sketch do stand up comedy do comediante Rafinha Bastos. Trata-se de um recorte que traz em seu interior as representações imaginárias de Rondônia feitas do lugar de um enunciador externo, isto é, de outra região diferente daquela que é objeto de deboche caricatural. Vale dizer que o recorte foi feito a partir de um vídeo postado no canal do comediante no Youtube1:

 

Recorte 1:

“Boa noite! Obrigado pela presença de todos... muita gente legal, muita gente bonita…[...] Muita gente bonita [pausa] eu acho todo mundo bonito. Isso é efeito colateral de uma temporada de shows que eu fiz em RON-DÔ-NIA2 (risos da plateia). Vocês não fazem ideia do que eu tô falando (risos da plateia). Eu vou dizer uma coisa pra vocês: se Deus é brasileiro, saibam que ele sacaneou Rondônia (risos da plateia). Eu tô falando sério. Os caras tinham que ganhar dinheiro com turismo em Rondônia [...] Propaganda na televisão assim: “Tá se achando feio? Autoestima lá em baixo? Ah, vem pra Rondônia! (muitos risos da plateia). Não fazem ideia...”

 

No processo de produção dos sentidos, em especial dos efeitos cômicos, é fundamental levar em consideração os elementos da interpretação do ator: expressões faciais, gesticulação, tom de voz, pausas, entre outros. Tais elementos fazem parte das condições de produção do humor sobre Rondônia e seus habitantes. Acrescente-se, a reação do público bem como elementos que denotam sua participação (no caso, risos e gargalhadas), também são importantes no processo de produção da comicidade sobre a aludida região nortista.

O sketch é produzido a partir da técnica do cômico: Rondônia e o rondoniense são colocados em uma situação cômica, caricata, beirando o ridículo. No recorte é mobilizada uma técnica que hostiliza e agride o outro: “[...] se Deus é brasileiro, saibam que ele sacaneou Rondônia (risos da plateia). Eu tô falando sério! Os caras tinham que ganhar dinheiro com turismo em Rondônia [...] Propaganda na televisão assim: “Tá se achando feio? Autoestima lá embaixo? Ah, vem pra Rondônia! (muitos risos da plateia). Não fazem ideia...”.

Note-se que, nesse funcionamento cômico em que se desqualifica (rebaixa) o outro (Rondônia e o rondoniense), a plateia responde positivamente, identificação ideológica essa materializada no riso e na gargalhada. A participação do público se dá, conforme Freud (1905) ensina, porque o objeto da comicidade aponta para um outro que não é ele (plateia), isto é, diferente dele. Logo a posição dos interlocutores no discurso é fundamental para a produção do efeito cômico. A sugestão debochada do humorista de promover uma propaganda com o foco na aparência dos rondonienses – “Tá se achando feio? Autoestima lá embaixo? Ah, vem pra Rondônia!” – corrobora a imagem preconceituosa de que no norte do país, especificamente no Estado rondoniense, as pessoas são feias em detrimento de outras regiões brasileiras em que, supõe-se, as pessoas são bonitas. Levando em consideração o recorte na íntegra, seu contexto de produção, temos no enunciado “[...] vocês não fazem ideia...” a irrupção, na forma de elipse, do sentido: “vocês não fazem ideia de quão feios os rondonienses são”, e por aí variam as paráfrases, em uma direção argumentativa que significa os rondonienses no lugar do feio, sujo, desqualificado.

Como já afirmamos, o prazer cômico é produzido porque os interlocutores – aqueles que participam da cena enunciativa (o público) – não pertencem, no plano do imaginário, à região objeto do riso. Se assim o fosse, certamente os sentidos seriam outros, e possivelmente não haveria prazer cômico, ao contrário. Voltaremos a essa questão.

Para finalizar essa parte da análise, importa dizer que, no enunciado “[...] Alto-estima baixa? Ah, vem pra Rondônia!”, o comediante, que é gaúcho, imagina o rondoniense e formula o enunciado como se fosse um habitante de Rondônia. Portanto, não é o rondoniense falando, mas a imagem feita da fala de um rondoniense sobre a sua própria aparência. Esse movimento de sentidos produz rebaixamento e desqualificação identitária do rondoniense, já que, nesse jogo discursivo, o rondoniense assumiria a sua feiura e ganharia, ao mesmo tempo, lucro com o turismo. O gesto linguageiro de colocar dizeres debochados na boca do rondoniense produz efeito cômico.

Trata-se de uma fala cômica que se mistura ao discurso publicitário para produzir humor. Mais exatamente, estamos diante do campo da comicidade que se traveste de um texto publicitário que vende uma vantagem de viajar para Rondônia: melhorar (aumentar) a autoestima do turista, do indivíduo de fora do Estado.

 

3.3 Recorte 2: Desciclopedia sobre Rondônia e seus habitantes

Semelhante ao funcionamento discursivo do recorte anterior, no presente recorte prevalece a técnica do cômico, apenas com um diferencial: o humor negro também está presente, como veremos.

Como o próprio nome indica, a Desciclopedia (atente-se para o item lexical des-) é um tipo de enciclopédia às avessas, que funciona a partir da imitação da enciclopédia online Wikipédia, numa versão caricata sobre Rondônia e seus habitantes. Nela há a presença de textos de natureza explicativa e descritiva em sua maioria, fotos justapostas a legendas, divisão de assuntos por temas, tais como: população, clima, transporte, acidentes etc. Vale dizer ainda, há termos escritos em azul ao longo do texto. O diferencial, que é sintomático a nosso ver, está em que, ao longo dos parágrafos, há uma espécie de correção textual (proposital) que se materializa na forma de um traço no meio de palavras e expressões, ou seja, marcam-se palavras e/ou expressões linguísticas por meio de traço (linha) no meio delas. Trata-se de um funcionamento discursivo que produz efeito cômico, uma vez que o leitor consegue ler as expressões aparentemente descartadas, expressões essas que produzem uma caricatura (deboche) do interlocutor, mais exatamente do lugar ao qual pertence.

 

Recorte 2: Desciclopedia: população

“População:

Compõe-se por imigrantes, paraibanos, cearenses, paulistas, paranaenses, gaúchos, cariocas e afins, que por não terem conseguido nada em seus buracos de origem (incompetência, burrice, ganância, entre outros) vieram tentar a sorte em uma região pouco explorada aqui na puta que pariu. [...] As barangas fêmeas, no geral, usam roupas curtas, geralmente com a barriga para fora para atrair o macho e cintos na barriga, que costumam chamar de saia. Nas regiões amais afastadas podem confundir-se com bolivianas, usam os cabelos pintados de amarelo e brincos gigantes do estilo “lustre”, sem falar nas pernas machucadas com cicatrizes de picadas de inseto e queimaduras de escapamento de CG. No centro da cidade, as fêmeas também costumam pintar o cabelo de amarelo e costumam fugir da água (estudos indicam que a água produz efeito avassalador sobre a aparência e principalmente o penteado delas - é normal que não tomem muito banho por causa disso, formando uma agradável mistura de suor e poeira pelo corpo.”

 

Observe-se que, após a palavra “baranga” riscada com uma linha no meio, lê-se a palavra “fêmeas”, léxico pertencente ao campo discursivo da Biologia, utilizado comumente para denominar o sexo de animais. Neste caso, o enunciador significa as mulheres rondonienses como próximas ou idênticas a animais, o que reforça a memória historicamente construída ao território rondoniense como lugar natural, selvagem, em estado bruto.

Justaposto a esse texto há duas fotos. A primeira delas mostra a imagem de uma mulher rondoniense com a boa aberta cheia de tucumã – fruto típico da região – justaposta a uma legenda com o seguinte enunciado: “Culinária: Nativa comendo Tucumã com grande classe”. Já na segunda há a imagem de uma tribo indígena, mais exatamente índios e uma oca grande rodeada e o seguinte enunciado justaposto: “Bairro Nacional: O bairro mais chic de Porto Velho.”

O efeito e prazer cômico é produzido em virtude da relação estabelecida entre a apropriação do discurso enciclopédico com sua linguagem séria característica, de um lado, e o modo caricato e satírico de significar o(a) rondoniense, de outro. Esse aparente disparate, característica do funcionamento discursivo dessa materialidade simbólica, garante a comicidade no texto.

 

 

 

Recorte 3: Trecho da Desciclopedia

 

Vale dizer ainda que se trata de um texto em que há o cômico e o humor conjuntamente, segundo a distinção estabelecida por Freud. O cômico é produzido em virtude do rebaixamento caricatural do rondoniense, já no humor o enunciador se inclui, como morador do estado de Rondônia, na descrição ridicularizada e caricata. Na esteira freudiana, o que geraria um afeto doloroso transforma-se em fonte de prazer cômico. Noutros termos, o enunciador extrai prazer cômico rindo de sua própria desgraça3. No recorte que segue, o dêitico “aqui” no enunciado “aqui na puta que pariu”, além de representar Rondônia como lugar pejorativo, deixa entrever o lugar de onde o enunciador enuncia, isto é, o advérbio “aqui” denuncia o lugar geográfico do qual o enunciador é parte, ou seja, o mesmo enunciador que satiriza Rondônia é seu habitante.

 

Recorte 4:

Compõe-se por imigrantes, paraibanos, cearenses, paulistas, paranaenses, gaúchos, cariocas e afins, que por não terem conseguido nada em seus buracos de origem (incompetência, burrice, ganância, entre outros) vieram tentar a sorte em uma região pouco explorada aqui na puta que pariu.

 

O efeito e o prazer cômico são produzidos graças à possibilidade de ambos os sentidos: (1) “em uma região pouco explorada” desliga para (2) “aqui na puta que pariu”.

O recorte 5, abaixo, foi extraído da seção “transporte” presente na enciclopédia às avessas. Trata-se de uma materialidade linguístico-imagética em que a ironia exerce a sua força.

Recorte 5: Legenda: “Portovelhenses andando de moto”

 

Segundo Orlandi (1983), a ironia é concebida como um processo de desconstrução do sentido, que desequilibra o institucionalizado. No recorte em questão, a ironia se produz na fronteira entre o verbal (o enunciado “Portovelhenses andando de moto”) e o não-verbal (imagem de um índio montado em um suporte de madeira). O enunciado verbal significa o contrário daquilo que afirma, que é o que caracteriza a ironia predominantemente.

Nesse sincretismo verbo-visual, a ironia produz um sentido para além do suposto significado pré-concebido da palavra. Isto é, a articulação entre imagem e enunciado produz um efeito que extrapola a significação textual, extrapola os sentidos imaginariamente intrínsecos à palavra “moto”, produzindo efeito jocoso e prazer cômico.

No recorte 6, a seguir, o funcionamento discursivo é similar: a ironia, enquanto dito que se choca com o seu referente, é produzida pela exploração cômica do outro: a imagem de índio lutando não condiz com a descrição “campeonato de judô no centro da cidade”. Reiterando, essa não coincidência/correspondência entre o verbal e o não-verbal é eixo norteador de produção da ironia e do efeito e o prazer cômico4.

 

 

 

 

Recorte 6:

Legenda: “Esporte: Campeonato de judô no centro da cidade”.

 

O campo da comicidade, como bem afirmou Freud, pode se materializar, entre outras, na forma de ironia. Os recortes 5, 6 e 7 são exemplificadores disso. Segundo Orlandi (1983), na ironia, “joga-se com a relação entre o estado de mundo tal como ele se apresenta já cristalizado – os discursos instituídos, o senso comum – e outros estados de mundo”.

Ao dizer o contrário do que afirma, a imagem abaixo justaposta ao enunciado “Bairro Nacional: o bairro mais chic de Porto Velho” joga no batimento entre a ironia e o sarcasmo. No caso deste último, ele pode se ligar ao humor negro ou a um taque direto. Desqualifica-se o outro no nível do ataque.

 

Recorte 7:

Legenda: “Bairro Nacional: o bairro mais chic de Porto Velho” 

 

Nas palavras de Orlandi (idem),

 

A ironia é um acontecimento discursivo que comunica e, ao mesmo tempo, recusa comunicar, mantendo o estado de dúvida. Ludicamente, e de forma própria, a ironia aponta para o insólito, para o non-sense, para a ruptura. E esse é um jogo que se produz não só em relação ao destinatário, mas mesmo em relação ao sujeito locutor, que também é prisioneiro das condições de seu próprio jogo. É característica desse modo de relação discursiva a forma pela qual se dá a antecipação (representação do que o outro se representa): partindo do instituído, o sujeito locutor atribui ao destinatário um discurso "normal", um conjunto de opiniões estabelecidas, e produz uma inversão ou mesmo um rompimento. (ORLANDI, 1983, p. 28)

 

Considerações finais

Esse modo de significar Rondônia e os rondonienses está relacionado com as condições materiais, históricas, que trabalham na constituição do estado de Rondônia. As questões referentes à (falta de) infraestrutura, ao saneamento básico, à pavimentação, à concentração de riquezas, à miscigenação, às diferenças de classe – muito acentuadas nesse estado –, entre outros fatores, dão origem a esse tipo de discurso preconceituoso sobre o estado e seus habitantes. Assim, o que temos, em sua grande maioria, é a produção e circulação de um sentido de Rondônia pré-histórica, sentido que agride e hostiliza a alteridade a partir de um discurso aparentemente ingênuo e brincalhão. No processo de rebaixamento do outro, atravessam relações de poder que, ao permitir que o outro (Rondônia e seu povo) seja ridicularizado, coloca como superiores aqueles que pertencem a outras regiões do país consideradas desenvolvidas.

A pesquisa igualmente permitiu mostrar que o campo da comicidade pode funcionar na produção de forças hostis (FREUD, 1989), o que coloca por terra a ideia de que ele é uma mera brincadeira sem maiores consequências. No corpus analisado, no primeiro recorte, o enunciador inferioriza e desqualifica Rondônia e seus habitantes, colocando-se diferente deles, já nos demais – os recortes da Desciclopedia –, há também a desqualificação do outro, no entanto o enunciador se inclui como rondoniense (habitante do território de Rondônia), a partir da caricatura e ironia. Garante-se o riso e o prazer cômico, de um lado, e corrobora-se os sentidos historicamente pejorativos sobre o Estado, de outro.

 

Referências

EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed, 1993.

FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Da ambiguidade ao equívoco: a resistência da língua nos limites da sintaxe e do discurso. Porto Alegre: Editora da Universidade do Rio Grande do Sul, 2000.

FOUCAULT, Michel. L'ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971.

FREUD, Sigmund. (1905). El Chiste e su Relación con lo Inconciente. In: Obras Completas, volumen 8. Traducción directa del alemán de José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu. ed., reimpressão, 1989.

GIL, Célia Maria Carcagnolo. Humor: alguns mecanismos linguísticos. Alfa (São Paulo), v. 39, p.111-119, 1995.

MOTA, Ilka de Oliveira; GINACH, Erich Lie; “Aqui em Rondônia é assim”: representações imaginárias em memes cômicos sobre os rondonienses. RUA, Campinas, SP, v. 23, n. 2, p. 203-220, 2017.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2001.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Editora Pontes, 1999.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Destruição e construção do sentido: um estudo da ironia. Trabalho apresentado no colóquio do Dep. de Linguística do IEL, UNICAMP, Campinas, SP: 1983.

PECHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1988.

POSSENTI, Sírio. Os humores da língua: análises linguísticas de piadas. Campinas: Mercado de letras, 1998.

SANTOS, Vanubia Sampaio. O processo de ocupação de Rondônia e o impacto sobre as culturas indígenas. Fórum Identidades, Itabaiana, ano 8, vol. 16, p. 197-219, jul./dez. 2014.

 

 

Data de Recebimento: 30/07/2020
Data de Aprovação: 30/08/2020


1  O vídeo pode ser apreciado na íntegra no endereço que segue: https://www.youtube.com/watch?v=Df1xqxEGpjc

2  A palavra “Rondônia” é pronunciada num ritmo silábico enfático: RON-DÔ-NIA e seguida de muitos risos e gargalhadas da plateia.

3  O fato de o enunciador rebaixar o outro e se incluir na descrição caricatural sobre Rondônia e seus habitantes faz do texto não somente cômico mas também humorístico, no sentido em que Freud (1905) o concebe. 

4  Vale dizer que o sujeito pode ou não se identificar com o processo em que ele é objeto do prazer cômico. A esse respeito, ler artigo de Mota e Ginach (2017) publicado na Revista Rua, aqui mesmo.






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