“O café é a cultura agrícola que mais progrediu em direção à sustentabilidade, com o Brasil na linha de frente. [...] Ser sustentável é mais fácil do que parece e acessível também para o pequeno produtor” (PLATAFORMA GLOBAL DO CAFÉ – grifo nosso).
“[...] a escrita é um trabalho da memória que estrutura as relações sociais de maneira específica (diferente da oral). Por isso tenho insistido em que atrás da letra, se há a língua, há sobretudo a história (discursividade, sentido)” (ORLANDI, 2013, p. 264).
Introdução
O Brasil, tradicionalmente exportador de alimentos “primários”, isto é, de alimentos que servem de base para a produção de outros alimentos, as commodities, significa a relação dos sujeitos com os territórios a partir de uma memória latifundiário-escravocrata. Nesta tradição, o café, cultivado no Brasil desde o século XVIII, ao final do século seguinte, graças a condições sócio-histórico-econômicas oportunas, às quais dispensaremos fundamental atenção no percurso deste trabalho, torna-se um grande produtor mundial da bebida. Desde então, ao lado de outros alimentos, especialmente a soja, o algodão, o milho, a cana de açúcar, a carne de frango e bovina, o país cada vez mais se significa ao mesmo tempo em que faz funcionar institucionalmente sob efeito de evidência o sentido para o grupo de nomes que viria a fundar uma nossa identidade: “o celeiro do mundo”. A produção de commodities, grupo em que se encontra atualmente o café, cultura-alvo das práticas prescritas pelo manual agronômico que tomamos como objeto de análise, é sobretudo de quantidade, de volume. A prática de uma agricultura significada historicamente junto ao discurso da economia se faz sob e sobre um funcionamento institucional de apagamento de uma outra agricultura, praticada por famílias que produzem alimentos, antes e para muito além de produzirem commodities.
O fazer pedagógico que permite vislumbrar uma relação - vertical- entre instituições públicas e privadas de ensino e pesquisa no campo das ciências agrárias, empresas e cooperativas de compra e venda de commodities e os agricultores textualiza-se sob a forma de manuais. Esses instrumentos tecnológicos trabalham neste (e este) cenário de agricultura que funciona sob a lógica da máxima eficiência produtiva.
Espaço de institucionalização, de estabilização e de prática de saberes significados a partir de uma relação peculiar entre sujeitos e territórios, o manual agronômico é tomado por nós como um instrumento tecnológico. Isso equivale a dizer que nos apropriamos dele não como materialidade linguística “neutra” de um dizer-como-cultivar a terra, mas como lugar de observação do funcionamento político do saber científico/extensionista em sua relação com o homem e a mulher do campo1 balizado pela escrita. Nesse sentido, procuramos compreender o espaço de significação que foi sendo configurado a partir de uma memória histórico-ideológica de que conhecimento não se faz fora da escrita e de tudo que essa escrita significa em termos de processos de identificação e subjetivação.
A inquietação que serviu como fundamento para que lançássemos um olhar para o manual agronômico, tomando-o como instrumento tecnológico que toca o imaginário sobre a relação conhecimento/escrita, foi a observação da distância entre a produção de sentido para os manuais dessa natureza e o homem e a mulher do campo. Essa distância seria para nós sintoma de um efeito de continuidade entre a ordem urbana e a ordem rural materializado no manual, como se fosse possível que essas duas diferentes ordens funcionassem do mesmo modo. Ora, trata-se de uma sobreposição de um funcionamento do urbano – em que a escrita se inscreve como estruturante – nos processos de subjetivação e identificação que se dão nessa ordem de constituição do homem/mulher do campo.
Seja pela dificuldade de acesso físico das mais diversas sortes dos camponeses2 a esses manuais, seja por não prescindirem da intermediação de um sujeito representado enquanto detentor de saberes legitimados sobre o cultivo da terra, tais como o agrônomo ou o técnico agropecuário3, para significar os manuais, esses textos instrucionais ainda não fazem parte do universo de produção de sentido dos camponeses brasileiros.
Para pensarmos essa distância entre o camponês, leitor declarado dos textos instrucionais para o cultivo da terra, e o manual agronômico recorremos, especialmente, à contribuição de Sylvain Auroux (2014 [1992]), cujos estudos propõem a compreensão da escrita como uma tecnologia, como uma revolução e como condição para que o conhecimento metalinguístico se efetive, e aos trabalhos de Eni Orlandi (2001; 2002), quem dá consequência aos estudos de Auroux e funda a História das Ideias Linguísticas no Brasil em uma articulação produtiva com a Análise de Discurso Materialista. Sob essa filiação teórica acreditamos ser possível mostrar o funcionamento do apagamento da relação dos camponeses com a terra a propósito da escrita.
O olhar para o manual agronômico junto a HIL: nossa tomada de posição
A “história do Brasil” é frequentemente contada a partir da relação entre as mais diversas subjetividades e os territórios colonizados e a colonizar. Dentre essas subjetividades, o português, o índio, os negros escravizados, o italiano, o brasileiro. A esses nomes correspondem linearizações, histórias legitimadas pelo Estado e suas instituições, por meio dos sujeitos que as contam e recontam a partir destes nomes comuns: “o português”, “o índio”, “os negros”, “o brasileiro”, “o italiano”, cujo ponto de intersecção para a produção de sentido é a relação com a terra. Uma subjetividade, contudo, foi deixada à margem da versão hegemônica da história do país: o homem e a mulher do campo, os camponeses.
Se o nosso olhar se encontra junto ao campo, tomando em consideração nossa história de colonização (latifundiária, escravocrata), poderíamos pensar uma possível sobreposição do “senhor de engenho” ao camponês, cujo trabalho se dá diretamente sobre a terra. Nesse sentido, Antônio Cândido, no prefácio de “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda (1995, p. 18 – grifos nossos), observa que “devido à crise das velhas instituições agrárias, os membros das classes dominantes transitam facilmente para tais profissões [as profissões liberais], desligadas do trabalho direto sobre as coisas, que lembra a condição servil”. Contudo, acreditamos que não se trata de uma sobreposição, mas do esvaziamento de sentido para o trabalho desempenhado de forma direta sobre a terra que não seja pelos povos nativos obrigados a tal tarefa, ou pelos negros escravizados. Temos, neste ponto, um aspecto fundamental do que acreditamos ser um processo institucional de apagamento dos sujeitos que cultivam a terra a partir do trabalho da família, ou seja, sob o modo da agricultura familiar4.
Sob este viés, podemos perceber, inclusive, a produtividade da metáfora sobre a possível (e desejada) fertilidade da nova terra, a propósito da Carta de Pero Vaz Caminha: “[(N)esta terra, Senhor,] Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.” (p. 14, grifo nosso). Os movimentos parafrásticos a partir desse dizer, trabalhado institucionalmente como “fundador” de uma identidade nacional, encontram seu lugar de memória oportuno na relação entre os sujeitos, o Estado e a terra. Ora um dizer sobre uma possível fertilidade das terras brasileiras graças à abundância de água percebida pelos colonizadores (“por bem das águas que tem”) se torna, finalmente, uma espécie de mote que sustentaria a ideia de Brasil como “celeiro do mundo” por razões “naturais” “percebidas” desde o primeiro contato dos europeus com a nossa terra: “Nesta terra, em se plantando, tudo dá.” Vejamos como o “se”, funcionando morfossintaticamente como um índice de indeterminação do sujeito, seguido pelo verbo “plantar” em sua forma nominal de gerúndio, apaga o sujeito sintático do verbo e dá o tom de uma pretensa inexistência de um sujeito-agente que planta. É como se os cultivos (de interesse econômico) brotassem quase espontaneamente da terra, milagrosamente fértil, prescindindo mesmo de um sujeito para sua condução. A oração principal, “tudo dá”, por sua vez, graças a um efeito de generalização-indeterminação advindo do pronome “tudo”, ratifica esse processo discursivo de apagamento da relação entre sujeitos e cultivo da terra, o qual funciona sob essa metáfora e constitui processos de subjetivação. Basta plantar. A terra provém. Basta plantar o quê? Quem vai plantar? Para quê? Por quê? O que a terra provém? Para quem?
Sobre os discursos da descoberta, Orlandi (2008 [1990], p. 51 – grifo nosso) mostra como eles seriam uma forma de controlar o sentido, segundo ela, em grande medida, descontrolado: “aí o jogo da paráfrase e da metáfora atua profundamente no estabelecimento do um, do outro, do mesmo e da permanência do sentido.”
Esvaziado de sentido o trabalho direto sobre os territórios, trata-se de fazer funcionar sentidos outros, produzidos em outros lugares, haja vista o persistente desencontro entre o fazer didático-pedagógico no campo das ciências agrárias e os camponeses. Diluídos em uma categoria geral: o “produtor”, o homem e a mulher do campo são alvos frequentemente declarados dos manuais agronômicos produzidos junto às mais diversas instituições: desde as instituições de ensino e pesquisa, as universidades públicas e privadas, até as organizações nacionais e internacionais, que desempenham papel relevante no e para os processos de produção e comercialização do café no mundo, e por meio dos quais não se significam, tampouco são significados.
Esse fazer didático-pedagógico textualizado sob a forma de manuais, longe de configurar uma tecnologia “neutra” e “transparente”, é espaço para praticar certos saberes e não outros na relação com a terra. É escrita que rege a relação entre domínio e não domínio de conhecimentos dos sujeitos sobre os territórios.
O manual agronômico, instrumento tecnológico, é sustentado por um imaginário estabilizado institucionalmente de que escrita e conhecimento são indissociáveis, e que, ao fazê-lo, mantém o camponês na posição em que se encontra: carente de produção de sentidos. Sentidos para sua relação com a escrita. Sentidos para sua relação com a terra. Trazer uma discussão sobre o manual agronômico junto à HIL é olhar justamente para o apagamento dos sentidos para estas relações sendo balizado pela escrita. Ao fazê-lo, estamos considerando esse instrumento tecnológico em sua existência no tempo e no espaço, isto é, compreendendo sua historicidade (NUNES, 2008a).
Dado isso, perguntamo-nos: se essa materialidade de saber se coloca, para o camponês, como algo fora de seu universo de produção de sentido, quais processos discursivos estão aí trabalhando para que os manuais agronômicos ainda sejam tradicionalmente utilizados no âmbito pedagógico-extensionista das universidades e demais instituições ligadas à produção cafeeira, a despeito desse desencontro? Ora, essa institucionalização dos manuais concorre para a estabilização dos sentidos que circulam nele. Sentidos inclusivos, para aqueles que significam a relação língua-saber-escrita: o sujeito urbano, e exclusivos, e aqui, tomaremos a palavra “exclusivo” como o que é não-condizente, eliminatório, para o camponês.
Neste sentido, é importante trazer Eni Orlandi (2013), quem, ao tratar de processos identitários e de subjetivação, ressalta que há um movimento de significação do sujeito pelo Estado, graças ao funcionamento de suas instituições e das relações materializadas junto a essas instituições, que lhe dão forma e efeito de unidade. Esse processo, o da individua(liza)ção, confere ao sujeito sua forma sujeito histórica, isto é, o resultado, no campo dos sentidos, da interpelação do indivíduo em sujeito pelo Estado, como resultado de um processo, de um construto. É este o (não) lugar do camponês: o indivíduo que, dado o processo de invidua(liza)ção pelo Estado sobre sua forma sócio-histórica, teve apagados os sentidos para sua relação de trabalho direto sobre a terra.
A HIL permite, aliada a compreensões discursivas importantes como a acima apontada, uma análise consequente do manual agronômico a fim de chegarmos a vislumbrar sua natureza constitutivamente contraditória, afinal, “pensar a história das ideias é tomar em conta [...] a ideologia, a historicidade, a memória, o que é impossível sem pensar o sujeito e o modo como ele se constitui, se subjetiva, se identifica” (ORLANDI, 2013, p. 81).
Apontamentos metodológicos
Nosso trabalho se dá a partir da tomada do manual agronômico “Manual de Implementação dos Itens Fundamentais do Currículo de Sustentabilidade do Café (CSC)” como um instrumento tecnológico. O Manual não nos interessa em sua função mesma, qual seja, a de “didatizar” o manejo sobre a lavoura cafeeira para que o produtor consiga obter “boa produtividade”, mas sim enquanto tecnologia que coloca em funcionamento a produção de um saber sobre o imaginário da língua (e da escrita) na relação do sujeito com a sociedade na história (ORLANDI, 2013).
O Manual é dividido em 18 seções, além de uma “Introdução”. Não foram informadas quaisquer datas de edição ou de publicação5. As divisões são temáticas, em acordo com categorias caras às ciências agrárias da forma como praticada no Brasil, visando a abordar os aspectos tidos como fundamentais6 para a condução da lavoura cafeeira, quais sejam: 1. Produtividade, 2. Controles, registro e documentação, 3. Custo de produção, 4. Análise de solo, plano de adubação e análise de folha, 5. Manejo integrado de pragas e doenças, 6. Cobertura e conservação do solo, 7. APP (Área de preservação permanente), 8. Uso racional da água, 9. Tratamento e destinação de resíduos, 10. Armazenagem de agroquímicos, 11. Devolução de embalagens de agroquímicos, 12. Agroquímicos com registro e prazo de carência, 13. Uso de EPI, 14. Treinamento, 15. Saúde e segurança, 16. Legislação trabalhista, 17. Jovens, mulheres e sucessão familiar, 18. Clima.
A Plataforma Global do Café é a associação internacional que assina o Manual, cuja elaboração conta com a participação de agências públicas estaduais brasileiras relacionadas à pesquisa e à extensão agropecuária, quais sejam: a Empresa Agropecuária de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER) dos estados do Paraná, de Minas Gerais e de Rondônia; o Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (INCAPER-ES) e a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral do estado de São Paulo (CATI-SP).
Nesta oportunidade, analisaremos a Introdução do Manual. Debrucemo-nos, pois, sobre o apontamento das razões pelas quais a selecionamos.
A Introdução do Manual permite que conheçamos a proposição dessa textualidade. Como dissemos anteriormente, pouco nos interessa a “intenção” que se mostra por meio dessa proposta didático-injuntiva de manejo do cafeeiro. Interessa-nos, sim, vislumbrar a maneira como está a funcionar, em uma tecnologia que constitui um discurso sobre a escrita, o apagamento da relação do camponês com a terra. A projeção imaginária de leitor para o qual o Manual é concebido, juntamente com a relação desse sujeito-(não)leitor com as instituições proponentes, encontram-se fortemente marcadas na introdução do Manual, circulando sob um efeito de “transparência” daquilo que se diz, o qual, confortavelmente, no caso do manual agronômico, apaga o funcionamento do político sobre e através (d)as injunções para a relação da mulher e do homem do campo com a terra.
É sobremaneira importante deixar claro que ao sinalizarmos um sujeito não-leitor não estamos trabalhando o pressuposto de que só haja leitura no verbal grafado. O leitor se constitui frente à língua(gem), que pode se apresentar das mais diversas formas. O ‘não’ estaria no gesto de haver um leitor explícito na cartilha – o camponês – que é, ao mesmo tempo que injuído enquanto leitor, apagado, porque não é com ele que a interlocução acontece, mas com um outro leitor que denega, silencia, interdita o leitor-camponês.
Para essa análise emergem duas categorias teórico-analíticas fundamentais para a compreensão do funcionamento do manual agronômico como um instrumento tecnológico, quais sejam: as noções de efeito-leitor (ORLANDI, 1998; NUNES, 2008b) e de forma sujeito histórica (ORLANDI, 2013). Buscamos, a partir dessa tomada de posição, fazer vir à tona o político, cuja dissimulação é parte do funcionamento da língua tomada em relação aos sujeitos, ao espaço a ao tempo, de maneira constitutiva. Ao cabo, acreditamos, estaremos corroborando o que aponta Auroux (2014 [1992], p. 16 – grifo nosso): “recusamos o princípio de simetria da Escola de Edimburgo, segundo o qual a produção dos conhecimentos deriva das mesmas causas, quaisquer que sejam os seus valores. O valor dos conhecimentos é ele mesmo uma causa em sua história”.
A Introdução do Manual: “sustentabilidade” e “responsabilidade” do pequeno produtor
Como dissemos, uma análise da introdução do Manual permite trazer à luz o funcionamento da proposição desse instrumento tecnológico, fazendo vir à tona o político que subjaz a pretensa transparência desse instrumento de vulgarização, de didatização da intervenção humana sobre os territórios, por meio da escrita e a partir dela. Deter-nos-emos particularmente ao funcionamento da noção de sustentabilidade, da maneira como se apresenta na Introdução, bem como do advérbio também. Funcionamento que se dá sob a marca dêitico-discursiva de terceira pessoa, a qual significa materialmente o distanciamento entre a posição-sujeito-institucional que enuncia e o homem/mulher do campo, projeção à qual é endereçado aquele dizer.
Para a análise a que nos dispomos, selecionamos da Introdução um recorte do processo discursivo que viemos compreendendo. Vejamos:
[...]
[1] O café é a cultura agrícola que mais progrediu em direção à sustentabilidade, com o Brasil na linha de frente, mas existem desafios a enfrentar.
[2] O produtor precisa primeiramente se tornar um bom gerente, ter produtividade e controle de custos para ter lucro, planejando, investindo e organizando. Além da questão econômica é importante preocupar-se também com a conservação do meio ambiente e com as condições de saúde e segurança no campo, fundamentais para o sucesso geral da atividade. O cumprimento das práticas deste Manual é também uma responsabilidade do produtor, uma forma dele fazer a sua parte.
[3] Ser sustentável é mais fácil do que parece e acessível também para o pequeno produtor. O grande beneficiário de se cumprir os 18 Itens Fundamentais deste Manual é o próprio produtor rural e sua propriedade. [...]
Estamos de acordo com Maria Onice Payer (1995, p. 24), quem diz, a propósito do lugar de sujeito que se configura como uma liderança: “um traço no qual percebemos inicialmente esta posição se exercendo é o mecanismo de referência em terceira pessoa ao lavrador (ou “trabalhador”, “homem do campo”, como quer que seja dito)”. Dito isso, consideremos, de largada, que marcar na materialidade da língua esse distanciamento autoridade-homem/mulher do campo na Introdução do Manual, pela escrita, seria um primeiro gesto no sentido de instaurar, ao mesmo tempo, a relação entre domínio e não domínio de saberes na relação dos sujeitos com a terra e a evidência do conhecimento a ser praticado e a ineficiência de quem não o pratica.
Esse “ele”, projetado para fora da interlocução eu-tu, marca a regularidade do apagamento que viemos discutindo. O Manual fala enquanto pretexto com o camponês, quando há, em seu funcionamento mesmo, uma interlocução com aquele que fará a intermediação: o agrônomo, o técnico agropecuário.
À luz desse plano enunciativo, em que jogam as tensões referidas acima, debrucemo-nos sobre o funcionamento da noção de sustentabilidade.
A noção de sustentabilidade chega com força no início da década de 90 no Brasil. Particularmente a partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (ECO 92), realizada no Rio de Janeiro, em 19927, os nomes “sustentabilidade”, “sustentável”, saturam o cotidiano dos brasileiros e vão se legitimando progressivamente à medida em que vão sendo incorporados aos livros didáticos, às ementas de disciplinas nas universidades e nas escolas, aos manuais empresariais, aos manuais agronômicos, que trabalham institucionalmente a estabilidade referencial desse objeto de discurso, ao mesmo tempo em que dissimulam a opacidade dessas categorias, apagando o funcionamento do político em relação ao simbólico.
Fundamentalmente a partir de discussões internacionais, grosso modo, a noção de “sustentabilidade” diz a respeito da importância de se preocupar com a viabilidade de recursos da natureza de que o homem se vale para sua existência, para que eles possam igualmente servir para a exploração econômica das gerações a vir. Sobre o efeito dessa projeção de futuro nos discursos construídos a propósito da relação – dicotômica- entre homem e natureza, Silva e Pfeiffer (2014, p. 98 – grifos das autoras) asseveram que
para que esse futuro não seja colocado em risco é preciso organizar a relação do homem com a natureza, por meio de organismos que ultrapassam as soberanias nacionais, desterritorializando o homem como um sujeito político vinculado a um Estado, colocando-o como indivíduo que deverá se comportar e, portanto, ter responsabilidade global, mundial, frente à natureza, conforme lhe são disponibilizados determinados conhecimentos pedagogizados.
No Brasil, além do efeito de “futuro”, “que acaba por apagar- apagamento político fundamental das políticas públicas- o presente, o aqui e o agora” (SILVA; PFEIFFER, 2014, p. 99), e trabalhando em convergência em relação a ele, o sentido de “sustentabilidade” ganha ares a-históricos, e acaba por circular como uma máxima (fórmula a ser seguida), que funciona por um viés moral, “pois a máxima não funciona como ‘lei’, mas como ‘regra de conduta’” (ORLANDI, 2013, p. 304). É preciso ser sustentável. É preciso “respeitar a natureza”. Quem, no Brasil, se relaciona com os recursos naturais a ponto de torná-los escassos ou inexistentes? As gerações atuais e as “futuras” se relacionam igualmente com esses “recursos”, e independentemente de onde elas estão e em que tempo? A dita sustentabilidade se coloca como demanda ética para as diferentes sortes de relação que as diversas populações no Brasil mantêm com seus territórios ou ela pode ser significada por um outro viés: o viés do “suporte”? Suporte das gentes, suporte dos territórios, para as práticas econômicas. Opera-se, assim, o apagamento da relação que os camponeses e camponesas e suas famílias estabelecem com a terra, que é diversa da relação pré-suposta pelo discurso da sustentabilidade. Para o homem e a mulher do campo, a terra e aquilo que ela porta não representam uma fonte de recursos materiais a ser respeitada, mas o espaço no seio do qual se significam. Essa distância forjada, via discurso da sustentabilidade, entre o que seria o espaço do homem e o espaço da natureza é peça fundamental no processo de apagamento não somente do trabalho realizado pelas famílias camponesas, mas antes de suas subjetividades.
Busquemos, agora, compreender como o Manual (a) institucionaliza e contribui para a estabilização referencial de “sustentabilidade”, concorrendo para a perpetuação de seus efeitos junto a um lugar de memória fundado no campo da economia, e dissimulado, de antemão, pela própria forma linguística como essa noção é apresentada; (b) trata de significar, a partir desse sentido e por causa dele, um deslizamento dessa noção, fundando-a não mais sob um imaginário a-histórico da relação homem-terra, mas sob o imperativo da manutenção, da “durabilidade” da atividade econômica realizada pelo produtor, a saber: a cafeicultura aqui e agora, fazendo trabalhar aí os sentidos de “cidadão”, sujeito de direitos e deveres: “O cumprimento das práticas deste Manual é também uma responsabilidade do produtor, uma forma dele fazer a sua parte” [para que, então, se torne “sustentável”]. Tudo isso, para, finalmente, (c) trabalhar esses sentidos da dita “sustentabilidade” de modo a projetá-la como algo externo ao (pequeno) produtor, “alcançável” por meio daquela didatização de um discurso científico que se materializa em sua relação indissociável com a escrita:
Ser sustentável é mais fácil do que parece e acessível também para o pequeno produtor. O grande beneficiário de se cumprir os 18 Itens Fundamentais deste Manual é o próprio produtor rural e sua propriedade.
[1] O café é a cultura agrícola que mais progrediu em direção à sustentabilidade, com o Brasil na linha de frente, mas existem desafios a enfrentar.
O primeiro parágrafo menciona a “vantagem” da cafeicultura brasileira em relação à “sustentabilidade”, noção que já circula e significa por efeito de evidência. Suspendamos, pois, essa evidência para que possamos fazer trabalhar, a partir de um olhar para o processo de formação do Brasil, um sentido possível outro para essa “sustentabilidade”. Vejamos: quais seriam os cultivos que ficam “atrás” do café na corrida pela sustentabilidade? Quais as características da planta do café, ou de seu cultivo, ou de quem o cultiva que permitem que ele “progrida” em direção à “sustentabilidade”? Quais fatores são entraves para o “caminho para a sustentabilidade” de outras culturas?
Holanda (1995) nos ajuda a compreender que as culturas agrícolas de substancial interesse econômico ao longo da história do Brasil não eram cultivadas de acordo com uma fórmula universal trazida junto a suas sementes ou mudas, ao contrário, a configuração da forma de cultivo do café, da cana de açúcar, do algodão, e sobretudo da possibilidade de cultivo dessas culturas, está irremediavelmente relacionada à forma de organização do Estado em relação aos sujeitos e aos territórios, e, portanto, às políticas estatais de ocupação e gestão da terra. Não se trata, portanto, de uma força pré-determinante dos cultivares e de suas exigências agronômicas exercida no sentido de (re)organizar as gentes num espaço e num tempo determinados, mas antes da maneira como se organizam os sujeitos em um território sempre em relação a um Estado no sentido de viabilizar ou não esta ou aquela cultura, este ou aquele modo de proceder ao cultivo de uma lavoura.
Legitimadas junto à história de nosso país, as culturas para exportação que tiveram como características socioeconômicas (e não meramente agronômicas) de cultivo grandes extensões de terra, mão de obra escrava, tecnologias de produção e manutenção da lavoura que, por seu custo, só estariam acessíveis a poucas famílias abastadas, oportunizaram a formação de uma sociedade estratificada, na qual uma aristocracia rural ocupou lugar privilegiado nos processos de produção de sentido para a relação dos sujeitos com os territórios. A cultura do café chegou a ser praticada nos moldes do latifúndio canavieiro, quando as condições socioeconômicas elencadas logo acima assim o permitiram. Entretanto, mais fortemente ao final do século XIX, o desmonte do tráfico de escravos somado a um ímpeto de urbanização necessária para um processo de formação de uma identidade nacional brasileira serviram como ponto de inflexão para que o cultivo do café fosse ressignificado.
Nesse sentido, Holanda (1995, p. 173) observa que o historiador alemão G. H. Handelmann chegou a pontuar que “o café é uma planta democrática [...]. Seu cultivo não exige tamanha extensão de terreno nem tamanho dispêndio de capitais; o parcelamento da propriedade e a redução dos latifúndios operam-se mais facilmente [...].”
É pertinente pensar que a vantagem da “sustentabilidade” da cultura do café, dado o percurso da relação dos sujeitos com a terra no Brasil, diz respeito justamente a esse aspecto de ressignificação, de reorganização dos sujeitos no espaço-tempo a partir daquele ponto de inflexão anteriormente mencionado. Estamos trazendo, pois, um sentido possível outro para a “sustentabilidade” da cultura do café: a demanda ética nas relações entre as diversas gentes e os territórios com os quais elas se relacionam, se significam, se subjetivam, e não a conhecida dicotomia homem- natureza em que aquele não se significa como parte desta, mas é paradoxalmente agente sobre ela e pode “salvá-la” ou “condená-la” (SILVA; PFEIFFER, 2014).
A oportunidade de ressignificação do cultivo do café especialmente a partir da segunda metade do século XIX permitiu que famílias de pequenos agricultores, em geral com poucos recursos, se ocupassem da atividade, uma vez que se colocou para elas, com maior força neste momento, um mercado interno, sobretudo urbano, consumidor de alimentos, não de matéria-prima para exportação. Deste modo, essa inflexão fez com que surgissem com mais fôlego e que se tornassem relevantes outras maneiras de ocupação e trabalho na terra, que não aquela agricultura ostensiva, intensiva, exploratória e unilateral, pela qual os territórios são significados como recurso e suporte para o lucro capital de poucas abastadas famílias, em detrimento de tantas subjetividades significadas na terra e por meio dela.
Se considerarmos este percurso de sentidos, o café não é a cultura agrícola que mais progrediu em direção à “sustentabilidade”, em seu sentido de algo eternamente distante, desejável e jamais plenamente alcançado, graças ao efeito de máxima advindo do funcionamento dessa categoria em relação ao Estado e suas instituições. O café já é uma cultura sustentável, haja vista seu percurso, que permitiu importante exercício de ética junto às histórias das gentes com as terras no Brasil. O cultivo do café diz a respeito de um maior cuidado com a terra. Pudera. As subjetividades historicamente constituídas a partir dessa cultura produzem aquilo que lhes pertence, que pertence às suas famílias: o alimento, enquanto as culturas agrícolas de exploração intensiva e extensiva dos territórios produzem commodities, e o produto da terra com esse estatuto não pertence a ninguém, senão à economia.
Não é, contudo, o valor ético e não dicotômico da sustentabilidade que se coloca para o camponês no Manual. O Manual trabalha, reitera, perpetua a noção a-histórica de sustentabilidade por evidência, como exterioridade a ser alcançada (pois já é desejada, e esse desejo é sintoma do efeito de evidência). O “desafio” colocado é justamente esse: alcançar a “sustentabilidade” significada junto à economia por meio do apelo à moral.
[2] O produtor precisa primeiramente se tornar um bom gerente, ter produtividade e controle de custos para ter lucro, planejando, investindo e organizando. Além da questão econômica é importante preocupar-se também com a conservação do meio ambiente e com as condições de saúde e segurança no campo, fundamentais para o sucesso geral da atividade. O cumprimento das práticas deste Manual é também uma responsabilidade do produtor, uma forma dele fazer a sua parte.
O segundo parágrafo traz o deslizamento da noção a-histórica de sustentabilidade para situá-la, ainda junto à economia, mas agora de forma declarada, basta observar como o léxico e a morfologia significam desse e nesse lugar: um bom gerente, produtividade, controle de custos, ter lucro, planejando, investindo, organizando. Não só os sentidos das palavras nos levam ao modo de funcionamento norteado pela máxima eficiência dos territórios, mas também a forma como elas se apresentam, saturando o dizer no eixo sintagmático: trata-se de nomes, a saber, são substantivos e adjetivos, além de formas nominais de infinitivo e gerúndio. Uma transitividade faria vir à tona o conflito daquilo que se apresenta enquanto linearidade, e acabaria por quebrar seu efeito de evidência, abrindo para o conflito.
Outro aspecto desse deslizamento: graças ao uso do advérbio “também” a conservação do ambiente entra como ressalva, como aquilo que se pode incluir, não como condição para o funcionamento da “sustentabilidade” que o sujeito-camponês é convocado a alcançar. Outrora pilar que funda o sentido da sustentabilidade a-histórica e sempre com ares de futuro mobilizada graças ao apelo à moral, o ambiente, neste deslizamento apresentado e estabilizado pelo Manual não é nada além de algo de que o camponês deva se lembrar após garantir a viabilidade econômica da atividade cafeeira: “é importante preocupar-se também com a conservação do meio ambiente”. Eficiência dos territórios na linha de frente, conservação do meio ambiente “em seguida”, afinal, o “café é uma das culturas mais sustentáveis no Brasil”, e aqui novamente está presente o funcionamento da sustentabilidade pelo efeito de máxima. Aquela sustentabilidade cujo efeito de exterioridade ao sujeito-camponês é a todo tempo trabalhado linguisticamente no Manual.
O funcionamento que podemos observar a seguir se dá via sujeito de direito. O camponês é chamado em sua responsabilidade individual, de cidadão, e são apagadas, neste movimento, as contradições da relação entre esse sujeito, a escrita, o Estado e o conhecimento. Passado agrário, escravocrata, latifundiário, em que o letramento e a escolarização e suas consequências foram significados em relação ao que é urbano, não camponês. O Manual está trabalhando o imaginário da indissociabilidade entre o conhecimento legitimado e escrita, e fazendo-o chegar, a despeito da dificuldade de acesso físico dos camponeses aos manuais agronômicos, ao homem e à mulher do campo, por meio de um efeito-leitor-homem-do-campo-às-margens-da-escrita: projeção imaginária que significa e perpetua a posição marginal do camponês na memória discursiva do processo de formação do Brasil. Dizemos, então, a respeito de, digamos, distâncias flagrantes: a distância de acesso físico ao Manual, e também, e sobretudo, a distância como sintoma de um efeito de continuidade do que é da ordem do urbano sobre o que é da ordem do campo. Trabalhando o pressuposto de que seria possível tratar da mesma forma essas duas ordens distintas a nível constitutivo, e não apenas locativo, o Manual apaga o camponês por significá-lo (e pretendê-lo significado) na escrita, constitutiva do urbano, sob a lógica forjada do discurso da economia.
O camponês, por seu turno, resiste a esse trabalho simbólico nas narrativas sobre a terra, não nas injunções, não de forma maniqueísta apartado do ambiente e de sua conservação, mas antes junto a estes, constituindo, compondo a natureza que, paradoxalmente, “quer” ser salva pela atuação do homem e pela lógica forjada da máxima eficiência dos territórios.
[3] Ser sustentável é mais fácil do que parece e acessível também para o pequeno produtor. O grande beneficiário de se cumprir os 18 Itens Fundamentais deste Manual é o próprio produtor rural e sua propriedade. [...]
O terceiro parágrafo reforça, sinalizada linguisticamente pelo “também”, a exterioridade da sustentabilidade em relação ao sujeito-camponês, afinal, “ser sustentável é acessível também para o pequeno produtor”, além de trazer a assunção à sua intangibilidade ao mesmo tempo em que continua a fazer funcionar um seu sentido moral sob o efeito de sua evidência. “Ser sustentável”: forma verbal nominal de infinitivo seguida por adjetivo. Aqui segue o funcionamento já presente no parágrafo anterior: trabalho do imaginário da relação conhecimento e escrita com efeitos nas práticas dos sujeitos. Basta seguir o Manual para ser sustentável...
Vimos que a Introdução do Manual faz sentir seus efeitos materiais a partir de movimentos discursivos que concorrem para atenuar, naturalizar, dissimular o abismo entre os sujeitos que significam a terra a partir do lugar da economia, da máxima eficiência dos territórios e aqueles que resistem a esse sentido, pois não são externos a essa natureza que deve ser preservada e salva pelo homem, mas são externos à materialidade do Manual e aos sentidos pelos quais e para os quais ela trabalha. O Estado faz “a parte dele” produzindo e fazendo circular o Manual, e o produtor, por sua vez, precisa fazer a dele: seguindo as instruções contidas nesse instrumento tecnológico. O Manual trabalha, institucionalmente, o imaginário que toca a relação conhecimento e escrita se valendo do maniqueísmo homem (urbano)- natureza, “dicotomização que funciona na contradição da aparente ausência do homem quando a referência é feita à natureza” (SILVA; PFEIFFER, 2014, p. 97). O funcionamento da Introdução do Manual tem como lastro a fabricação de uma projeção de sujeito-camponês que o significa a partir de uma categoria em que ele definitivamente não se subjetiva: a do homem urbano, escolarizado, individualizado pelas instituições de Estado em homem da economia, que não se vê como parte da natureza, mas como um agente sobre ela, um protagonista, lugar em que camponeses a camponesas no Brasil definitivamente não se encontram.
Considerações finais
Quisemos, neste trabalho, trazer para uma apreciação linguístico-discursiva um manual agronômico, dentro do quadro teórico-analítico da História das Ideias Linguísticas em articulação com a Análise do Discurso Materialista. Tratando o Manual objeto deste estudo não como um “instrumento neutro” do fazer extensionista de instituições públicas e privadas que se ocupam da agricultura brasileira, mas como um instrumento tecnológico que toca o imaginário de que escrita e conhecimento estariam em relação constitutiva, buscamos tornar visíveis as contradições que constituem este instrumento tecnológico, o que ajuda na compreensão do perpétuo abismo entre a extensão rural da maneira como praticada pelas instituições mencionadas acima e o homem e a mulher rural.
Nosso gesto de análise sobre o manual agronômico “Manual de Implementação dos Itens Fundamentais do Currículo de Sustentabilidade do Café (CSC)” oportunizou perceber que a textualização das injunções sobre as práticas agrícolas e pecuárias traz consigo irremediavelmente, porque não há fazer científico e extensionista apartado dos sujeitos e de um espaço-tempo: (1) um efeito-leitor-homem-do-campo-às-margens-da-escrita: projeção imaginária que, a uma só vez, significa a posição do camponês na memória discursiva dos processos de formação do Brasil e a perpetua, (2) uma ideologia: a da eficiência máxima dos territórios (a despeito dos processos de subjetivação que se dão neles e por meio deles), (3) uma sobreposição de saberes: do que é legitimado, produzido junto às instituições públicas e privadas que se dedicam à pesquisa no campo das agrárias, sobre o que não o é, perpetuado (resistindo?) pelas narrativas sobre a terra que perpassam gerações e constituem os processos de subjetivação do homem e da mulher do campo.
O Manual, ao mesmo tempo em que trabalha esse efeito-leitor-homem-do-campo-às-margens-da-escrita e dos conhecimentos materializados por ela e através dela significa este mesmo sujeito como agente sobre “a natureza”, em termos de uma relação tão dicotômica quanto contraditória entre “homem” e “natureza”. A linearidade dessa relação, suficientemente trabalhada a nível de Estado e de suas instituições, autoriza pensar a dita “sustentabilidade” como algo sempre “a ser alcançado”. Uma abstração, pois funciona e faz funcionar uma a-historicidade que dissimula o político constitutivo da relação sujeitos-Estado-territórios. Uma máxima, dado seu efeito de regra a ser seguida, o que fisga os sujeitos pelo viés da moral: quem não quer ser sustentável?
Com efeito, o Manual, a uma só vez, institui a evidência do conhecimento a ser praticado e a ineficiência de quem não o pratica. À margem da legitimidade instituída para o fazer humano sobre os territórios, o camponês é alvo declarado de injunções que tocam o imaginário da indissociabilidade conhecimento/escrita e da precisa separação homem/natureza, em que aquele seria agente-protagonista responsável pela manutenção dos recursos naturais para as gerações a vir.
Deparamo-nos, então, com a contradição constitutiva do manual agronômico: a escrita de um dizer-como-fazer voltada a quem historicamente se encontra à margem, a uma só vez, dessa tecnologia e dos saberes legitimados que ela materializa. Sujeitos convocados em sua responsabilidade jurídico-civil, de direitos e deveres, a “cuidar”, a “preservar”, a “manter” os territórios a funcionar sob efeito do discurso econômico da máxima eficiência produtiva, no qual e por meio do qual são mantidos à margem da produção de sentido.
O Manual funciona, portanto, sob e através do efeito do apagamento sócio-histórico da relação particular dos camponeses com a terra, ao mesmo tempo em que concorre para a manutenção e perpetuação da condição desta relação: de não-lugar.
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Data de Recebimento: 23/11/2020
Data de Aprovação: 22/03/2021
1 Lançamos mão da designação do campo e não no campo porque não dizemos a respeito de um aspecto meramente circunstancial, de um locativo. Ao utilizarmos a preposição de (de+o) dizemos do pertencimento ao campo em termos de uma ordem própria que articula de modo indissociável espaço, sujeitos, e os processos de identificação e subjetivação que se dão nesse “lugar”.
2 A nomeação “camponeses” é também uma forma de materializar linguisticamente o pertencimento desses sujeitos à ordem do campo, para muito além do estatuto adjetivo desses nomes que sinalizaria um pertencimento da ordem espacial.
3 Os manuais de práticas agronômicas são lugar-comum das injunções de um dizer-como-fazer sobre os territórios. Concebidos pelas mais diversas instituições, desde universidades e agências de pesquisa e extensão rural públicas e privadas, até empresas produtoras de agroquímicos, o manual agronômico é usualmente por elas distribuído e posto a circular. Quando chega fisicamente até o homem e a mulher do campo, é comum que o manual seja mantido em suas propriedades, entretanto, sem que seja praticada a “utilidade” para a qual foi concebido, uma vez consideradas as diversas dimensões da distância entre aquela textualidade grafada e o sujeito-camponês. Sabida essa distância, os tradicionalmente “detentores” dos saberes legitimados sobre o cultivo dos territórios (agrônomos, técnicos agropecuários), que geralmente trabalham para as instituições acima mencionadas, fazem a “mediação” manual-homem/mulher do campo, e, fazendo-o, dissimulam o apagamento das subjetividades do campo, afinal o manual é por eles “didatizado”. Uma vez cumpridos os respectivos papeis institucionais no sentido de “tornar acessível” o manual, o que resta é atrelar a (in)eficiência à (não)vontade subjetivo-individual do homem/mulher do campo.
4 A Lei n. 11.326 versa que é considerado “agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos: I- não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II- utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas de seu estabelecimento ou empreendimento; III- tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; IV- dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família (SENADO, 2006)
5 Aspecto da textualidade do Manual, a qual, pela ausência, a uma só vez corrobora e reverbera o efeito de universalidade das práticas agronômicas ali materializadas.
6 É necessário, acreditamos, trazer à tona o conflito que subjaz o efeito de evidência com que circula a palavra “fundamentais” quando dizemos a respeito das práticas agrícolas. Por ora, podemos nos contentar com os seguintes questionamentos: “fundamentais para quem?”, “fundamentais por quê?”, “fundamentais para todas as formas de cultivo do café?”, “se há itens fundamentais, quais seriam os itens não fundamentais, pouco relevantes ou dispensáveis para o cultivo desse alimento?”
7 Telma Domingues da Silva, em sua dissertação intitulada “A biodiversidade e a floresta tropical no discurso de meio ambiente e desenvolvimento” (1995), traz questões substanciais sobre a ECO 92.