Empresas-aplicativo de delivery e sujeitos-entregadores: relações de trabalho e mobilidade na cidade pandêmica


resumo resumo

Deborah Pereira
Vinicius Brito



1 Introdução

Operários do novo normal - Denis Gonsales

 

Tarsila do Amaral pintou a tela “Operários” em 1933, pouco tempo depois de a artista paulistana, fortemente atrelada ao Movimento Modernista, iniciado pela Semana de 22, voltar da União Soviética, onde trabalhou como proletária. A pintura feita a óleo coincide com o início da industrialização no Brasil, mostrando ao fundo, em tons acinzentados, as chaminés e os pavimentos de uma fábrica, à frente da qual se empilham rostos de fisionomias diversas, em um aceno à onda migratória que ocorria no Brasil do Governo Vargas. Já “Operários do novo normal”, imagem que abre esta Introdução, é uma versão possível — variança, nas palavras de Eni Orlandi (2017), uma condição para a formulação, nas várias possibilidades de o discurso se textualizar — do quadro de Tarsila. Nesta obra de Denis Gonsales, produzida em 2020, no acontecimento da pandemia de Covid-19 e do seu “novo normal”, lemos a pirâmide de operários, com rostos, agora, mascarados pelo capacete e sobrepostos à bag de marcas como Loggi, Ifood, Rappi, Uber Eats e James. O operário1 do “novo normal” é o sujeito-entregador e, as fábricas de outrora, são as empresas-aplicativo.

A pandemia do novo coronavírus instaurou, a princípio de 2020 e no decorrer de 2021, uma das piores crises sanitárias do Brasil, com ocupação total de leitos de UTI e milhares de vidas perdidas por conta do agravamento da doença. O cenário intensifica, ainda, problemas que vêm crescendo no país desde 2015, como o empobrecimento, a fome e o desemprego dos trabalhadores. Para se ter uma ideia, a nação atinge nos primeiros meses de 2021, com o repique de casos de Sars-CoV-2, um número recorde de desocupação da população (14,7%) e, entre os ocupados, mais de 39% (34,2 milhões de brasileiros) se dedicam a vagas informais, com vínculos de trabalho precários, de acordo com o IBGE (PNAD..., 2021).

Em contrapartida, com as medidas de isolamento social adotadas pelos governos estaduais para tentar conter a disseminação do vírus, a despesa dos sujeitos-consumidores com serviços de entrega, especialmente Ifood, Rappi e Uber Eats, cresceu quase 150% em 2020 no Brasil (SARAIVA, 2021). Nesse cenário, o iFood, empresa líder entre aplicativos de delivery no país, chegou à marca de 39 milhões de pedidos por mês no primeiro ano da pandemia, com mais de 200 estabelecimentos “parceiros” (IFOOD…, 2020). Para atender à grande demanda, mais de 32 milhões de brasileiros trabalham por intermédio de empresas-aplicativo, dos quais 11,4 milhões começaram a usar o serviço a partir da pandemia de Covid-19, conforme pesquisa do Instituto Locomotiva (2020).

Assim, as empresas-aplicativo de delivery se tornam “o maior empregador” do Brasil, ainda que não garantam proteção social aos sujeitos-entregadores, quadro que se deve, de acordo com Alves et al. (2020, p. 93), ao “retrocesso” dos direitos sociais, com a reforma de leis trabalhistas, por exemplo, e o alto do índice de desemprego no país. “O trabalho intermediado por aplicativo traz consigo uma série de desafios para o Direito do Trabalho e alcança até mesmo sua categoria básica, que é a relação de emprego”, escrevem Alves et al. (2020, p. 94). Os autores pontuam, ainda, que a forma de as empresas-aplicativo se referirem à subordinação dos entregadores leva a questões como “esse tipo de trabalho é desempenhado para ou por aplicativo? O aplicativo diz que o entregador trabalha por meio de sua tecnologia. Já os entregadores tendem a se ver trabalhando para o aplicativo”. O discurso jurídico não prescinde da língua, na qual o político funciona. Em outras palavras, os sentidos (de trabalho para/por app, de prestação de serviço, de empresa etc.) são divididos (embora “pareçam” uníssonos, quando a linguagem é tomada como transparente pelos sujeitos), assim como a sociedade, estruturada na divisão das relações de poder (ORLANDI, 2006).

 

1.1 Uma questão discursiva

A proposta desta pesquisa, portanto, não é se deter à eficácia ideológica dos números (há “x” desempregados no Brasil, “y” trabalhadores em postos informais de trabalho, “z” entregadores trabalham para/por empresas-aplicativo etc.) ou se debruçar sobre a questão do trabalho por intermédio de aplicativos para o que regula o Direito do Trabalho, por exemplo, ainda que tenhamos recorrido a pesquisas quantitativas e a discussões jurídicas para situar as condições de produção do discurso das empresas-aplicativo de delivery, tanto em relação à situação histórica ampla (constituição) quanto na relação com as circunstâncias específicas (formulação e circulação) do discurso (ORLANDI, 2008) dessas empresas sobre a “parceria” com os sujeitos-entregadores.

Nos interessa trabalhar aqui, isto sim, com outros dados, entendidos enquanto discurso, um objeto a partir do qual se constrói a teoria discursiva e que não é “dado” na natureza (ORLANDI, 1996), não é um “resultado” empírico apreendido por experiência do analista, mas, sim, produto de inúmeras determinações históricas com base na língua, materializando efeitos de sentidos entre locutores (PÊCHEUX, 1997). Por isso, ancorados nos princípios e procedimentos da Análise de Discurso, nos perguntamos: como empresas-aplicativo, na entrega de serviços (delivery) por intermédio de plataformas digitais, significam a relação de trabalho com os sujeitos-entregadores?

Movidos pela questão de pesquisa, os objetivos são (a) analisar materiais de empresas-aplicativo de delivery na relação com o trabalho realizado por sujeitos-entregadores; (b) situar as condições de produção que sustentam o discurso sobre o trabalho por intermédio do aplicativo na formação social2 capitalista no Brasil contemporâneo; (c) refletir sobre a mobilidade de sujeitos-entregadores a partir do acontecimento da pandemia de Covid-19 no espaço urbano brasileiro (cidade pandêmica); e (d) compreender como o sujeito de dados, no neoliberalismo, se constitui na relação significativa de trabalho entre o “operário do novo normal” e as empresas-aplicativo de delivery.

 

1.2 Do arquivo ao corpus de pesquisa

Para dar base e corpo a essas análises, é necessário um investimento na leitura do arquivo e na construção do corpus de pesquisa. Assim, retomamos Pêcheux (2010, p. 51), que concebe o arquivo como “um campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão” e, mais que isso, compreende a leitura e a interpretação como gestos fundamentais na composição do arquivo; ou seja, todo arquivo carrega, em seus arranjos, a historicidade e as disputas sócio-políticas. O arquivo não é, portanto, um amontoado, um acúmulo; ele não é o “reflexo passivo de uma realidade institucional, ele é, dentro de sua materialidade e diversidade, ordenado por sua abrangência social” (GUILHAUMOU, MALDIDIER, 2010, p. 162). Essa abrangência social tem relação com o fato de que os arquivos produzem sentidos uma vez que procedem — e se constituem — da/pela “materialidade da língua”3.

Tendo isso em mente, podemos dizer que tratar da composição do arquivo é um dos gestos inaugurais de todo movimento de análise, de modo que, para Schneiders (2014, p. 104), o arquivo significa “não apenas uma categoria teórica, mas sim uma categoria teórico-metodológica”. Nosso arquivo, então, é composto por diversas materialidades que atravessam os discursos produzidos pelas empresas-aplicativo de delivery no que diz respeito, especificamente, às relações de trabalho com os sujeitos-entregadores. Posts e comentários em redes sociais, informações presentes nos sites, hashtags, propagandas veiculadas pela televisão e internet, entre outras formulações, formam o “campo de documentos pertinentes e disponíveis” sobre a questão de pesquisa desenvolvida aqui.

A observação e a leitura desse arquivo, guiadas pela pergunta de investigação, nos faz chegar ao corpus. Como nos ensina Courtine (2009, p. 43), o corpus é “um conjunto aberto de articulações cuja construção não é efetuada já no estado inicial do procedimento de análise”, o que implica a tese de que a “construção de um corpus discursivo possa perfeitamente ser concluída apenas no final do procedimento”. O processo de elaboração do corpus, portanto, é contínuo; caminha junto com o desenvolvimento da análise e foi justamente assim, de maneira continuada, que o nosso corpus ganhou forma, se constituiu. Aqui, o chamamos de corpus de partida, aquele que nos permite traçar um primeiro movimento de análise e compreender inúmeras inquietações, mas que não nos estaciona; ele, pelo contrário, possibilita que novos incômodos cheguem, que outras perguntas se abram proporcionando uma pesquisa em curso, dinâmica, cujas respostas produzem, ao invés de um efeito de fechamento, outras demandas, outros deslocamentos.

Sendo assim, nosso corpus de partida é formado pelos seguintes enunciados: “#ViverÉUmaEntrega”, “parceiros de entrega” (e derivações, como “entregadores parceiros”) e “tenha poder de escolha”. Todas essas formulações foram retiradas de canais oficiais das empresas-aplicativo de delivery Ifood, 99Food e UberEats, especificamente das sessões que visam a trazer orientações para futuros entregadores — explicando as regras e “vantagens” deste tipo de vínculo — ou que buscam informar os clientes e usuários comuns sobre a relação entre a empresa e os entregadores. A hashtag #ViverÉUmaEntrega (Imagem 1) foi mote de uma campanha publicitária do Ifood lançada em Julho de 2020; os vídeos desta propaganda foram veiculados tanto no horário nobre da TV quanto através do YouTube e a hashtag, além de estar presente nesses materiais audiovisuais, foi disseminada nas redes sociais da empresa. “Parceiros de entrega” e “entregadores parceiros”4 nomeiam os sujeitos-entregadores vinculados às plataformas. Tal modo de nomeação se repete nas três empresas analisadas aqui (Ifood, 99Food e UberEats), de maneira que a “parceria” se torna, nesta pesquisa, uma palavra bastante cara para compreender a relação de trabalho entre as empresas-aplicativos e os entregadores. Já “tenha poder de escolha” (Imagem 3) está presente no site da 99Food, justamente na página na qual deve ser feito o cadastro de novos entregadores. “Tenha poder de escolha”, ao lado de “aumente seus ganhos” e “tenha mais vantagens”, é significado como benefício adquirido pela “parceria” entre empresa e entregador.

 

 

  Imagem 2 – “Tenha poder de escolha” - print da seção de cadastro de novos entregadores no site
da 99food”. Fonte:
https://food.99app.com/pt-BR/entregador.

 

2. Adentrando o corpus: tecendo alguns gestos de análise

Considerando, então, os materiais expostos acima, gostaríamos de costurar nosso empreendimento de análise partindo do enunciado #ViverÉUmaEntrega. Diferente das outras formulações, esse enunciado possui a especificidade de ser uma hashtag, ou seja, ele tem um funcionamento e, sobretudo, um modo de significar que precisa ser considerado. Assim, pontuamos que as hashtags (representadas pelo símbolo cerquilha (#)) circulam em espaços clicáveis e não clicáveis há mais de 10 anos e funcionam como um canal de troca e de “filiação difusa” (PAVEAU, 2017) entre usuários, aglomerando dizeres em torno de si mesmas. Entendemos, aqui, as hashtags como enunciados — já que são passíveis de deriva, suscetíveis ao “tornar-se outro” — com a particularidade de, quando dispostas online, serem clicáveis e pesquisáveis (PEREIRA, 2018). Por permitirem a criação de um fio, constituindo-se por um post que se soma a outro e, depois, a mais outros, formando uma ligação infinita, dizemos que as hashtags são enunciados que se abrem para um arquivo. Esse arquivo não é opaco, é afetado pela historicidade e encontra os efeitos da ideologia em sua forma de produzir sentidos; o arquivo-hashtag é aberto, está em constante retroalimentação e forças de memória conduzem a maneira como é incessantemente construído e lido.

Para compreender #ViverÉUmaEntrega, vamos retomar a imagem do fio. Se imaginarmos um novelo de lã infinito sendo lançado no ar, podemos dizer que ele se desenrolaria de forma contínua e desordenada pelo espaço e pelo chão, deixando suas marcas no ambiente e, metaforicamente, filiando sujeitos, aglomerando dizeres e formando um arquivo. No entanto, essa imagem supõe uma origem: algo ou alguém confeccionou e lançou o novelo. O mesmo não acontece com a língua. Os sentidos não são fabricados como objetos; uma origem dos dizeres e dos sentidos é ilusória. Isto diz respeito ao que Pêcheux (2009, p. 173) chamou de esquecimento número 1, aquele que nos permite entender que, embora o sujeito não seja fonte de seu dizer, ele precisa dessa ilusão para enunciar: “o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina”. Orlandi (1999, pp. 33-41) compreende que esse esquecimento é da instância do inconsciente, resultando do modo pelo qual somos afetados pela ideologia. Para a autora, os sentidos são determinados pela “maneira como nos inscrevemos na língua e na história” e “tudo que dizemos tem, pois, um traço ideológico em relação a outros traços ideológicos”.

Essas considerações são importantes para que percebamos que os sentidos produzidos pelo enunciado #ViverÉUmaEntrega não se originam e tampouco são lançados no mundo pela empresa Ifood. A empresa-aplicativo promove a campanha e, através da hashtag, faz com que ela circule e construa um arquivo infinito nas redes, o que é possível porque #ViverÉUmaEntrega repete sentidos preexistentes, retoma uma memória, um já-dito, uma filiação ideológica que faz com que tal hashtag signifique. Pêcheux (1999, p. 46), em uma célebre citação a respeito da memória discursiva, nos ensina que a memória “vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível”. A memória, então, possibilita a significação e isto não se dá sem disputa, sem confrontos já que esta mesma memória tem suas bordas como “transcendentais históricos”, sendo “necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas” (PÊCHEUX, 1999, p. 50).

Além disso, Pêcheux (1999, p. 46) propõe a seguinte pergunta: “a questão é saber onde residem esses famosos implícitos, que estão ‘ausentes por sua presença’ na leitura da sequência: estão eles disponíveis na memória discursiva como em um fundo de gaveta, um registro oculto?”. A ideia lançada por Pêcheux, retomando P. Achard, é de que não é possível encontrar nunca este discurso do implícito “sob uma forma estável e sedimentada”; o que há, na verdade, é uma regularização e nela é que residem os implícitos “sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase” e, assim, são formadas as “leis de série do legível”. No entanto, essa regularização é “sempre suscetível de ruir”, ela pode ser desmanchada e outra série ser produzida. Pêcheux, portanto, nos indica que os dizeres, inscritos em uma determinada memória, podem manter a regularização anterior ou “desregulá-la”, remexendo na rede de implícitos e instaurando outros sentidos. Em relação à #ViverÉUmaEntrega, nos perguntamos: quais implícitos esse enunciado carrega? A quais regulações ele se filia? Quais traços ideológicos marcam as suas significações? Para entender que sentidos preexistentes se materializam na hashtag, nos apropriamos do exercício parafrástico.

Orlandi (1999, pp. 36-38) afirma que a paráfrase é a matriz do sentido, pois “não há sentido sem repetição”, de modo que os processos parafrásticos são definidos como “aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória”. É pelo trabalho da memória que podemos compreender os “sentidos que se mantêm” (ou que se rompem) por meio dos arquivos, dos enunciados, das hashtags. O exercício parafrástico é, justamente, um exercício de memória (que não busca, simplesmente, relembrar ou recordar, mas, sim, que procura escutar como se dá a relação de um discurso com outros discursos, com o já dito) e a paráfrase, ainda de acordo com a autora, “corresponde a um já-lá da enunciação”, reflete um retorno aos “mesmos espaços de dizer”. Nesse sentido, especificamente acerca da atuação do analista em relação ao exercício parafrástico, Lagazzi (2015, p. 178) discute que buscar paráfrases plausíveis para um enunciado significa “considerar as derivas possíveis nas condições de produção dadas para, assim, delimitar as fronteiras da família parafrástica à qual pertence o enunciado”, conjurando, no discurso em análise, as posições sujeito e as formações discursivas em curso. Por sua vez, Sarti e Chiaretti (2016, p. 74) acentuam que, ao longo de todo dizer, famílias parafrásticas são formadas e rejeitadas, pelo sujeito, no espaço do não-dito. No entanto, o que não foi dito também constitui o dizer, caracterizando-se como, segundo as pesquisadoras, “sentidos possíveis, porém, indesejáveis em uma dada situação discursiva”.

Sendo assim, para buscar estas paráfrases plausíveis, é necessário entender as condições de produção de #ViverÉUmaEntrega. A campanha foi lançada pelo Ifood em julho de 2020 e, no mesmo período, eclodiram manifestações de entregadores de aplicativos, nas ruas e nas redes sociais digitais, que demandavam por segurança (como o direito a seguro de vida), auxílio durante a pandemia (incluindo a distribuição de equipamentos de proteção individual), transparência sobre as formas de pagamento e fim dos bloqueios indevidos do aplicativo. A paralisação foi chamada de “Greve dos Apps” ou “Breque dos Apps” e conseguiu concentrar um apoio bastante significativo da opinião pública. No dia 01 de julho de 2020, dia da primeira paralisação dos entregadores, as hashtags #BrequedosApps, #GrevedosApps e #grevedosentregadores ocuparam os primeiros lugares dos assuntos do momento no Twitter Brasil e, além de lançarem luz para as condições de trabalho e de vida dos entregadores, seus apoiadores recomendaram que, sobretudo nos dias dos atos, os sujeitos-consumidores não utilizassem os aplicativos.

Marchesini (2020), através de uma análise de dados mais detalhada, constata que a primeira hashtag em apoio ao movimento foi compartilhada em 12 de junho, convocando os sujeitos-entregadores para o ato que aconteceria três semanas depois. Ou seja, o debate acerca das circunstâncias trabalhistas dos entregadores já se marcava nas redes antes mesmo das grandes paralisações ocorridas durante o mês de julho. Nessa perspectiva, vale, ainda, considerar que a pandemia causada pelo novo coronavírus intensificou os agravos enfrentados pelos entregadores, uma vez que, ao trabalharem na rua, em movimento e contato contínuo com os usuários dos aplicativos e funcionários dos restaurantes, os riscos de contaminação se ampliam. Nos próximos tópicos, iremos nos deter de maneira mais específica a respeito do acontecimento da Covid-19 e a sua relação com a (i)mobilidade e os entregadores, mas, neste ponto, é importante que nos atentemos ao seguinte: exatamente num momento em que uma ameaça à vida se torna mais direta e os entregadores demandam, entre outras questões, por equipamentos de proteção e seguro de vida, a hashtag #ViverÉUmaEntrega se torna o enunciado principal de uma campanha da maior empresa-aplicativo de delivery do país.

Com isso, chegamos às seguintes paráfrases possíveis para #ViverÉUmaEntrega: “viver é um risco”, “viver é um sacrifício”, “viver é trabalhar por inteiro, não importando as condições”. A vida (significante tão repetido nessas condições de produção do discurso) é, através do verbo “viver”, central nas formulações. Vale apontar aqui que a vida é constantemente um assunto em pauta, discutido nos mais diversos campos, um significante extremamente comum e ordinário cujos sentidos, na medida em que são amplamente partilhados, são, também, sobremaneira, disputados. Quando, então, há um vírus em disseminação ao redor do mundo com efeitos mortais, falar sobre a vida se torna ainda mais corrente e, consequentemente, os confrontos em torno do que é viver se multiplicam.

No enunciado em análise, viver é definido pela entrega. A entrega faz uma referência direta aos entregadores, ao ato de entregar, de passar algo a alguém, mas, também, entrega se vincula a sentidos de concessão, de submissão, de rendição. Considerando as condições concernentes à conjuntura de trabalho dos entregadores, as reivindicações e o fato de o tema estar em bastante evidência no período, é possível dizer que #ViverÉUmaEntrega produz sentidos de entregar a vida ao trabalho, submeter-se à empresa, render-se a uma situação trabalhista sem garantias, sem direitos e extremamente desfavorável e perigosa porque isto sim seria viver. É como se a afirmação de que a vida é uma entrega fosse uma resposta a essa série de manifestações de/por entregadores que eclodiu no país: a vida é um jogo de superação, um sacrifício, um risco e, portanto, “não reclame, entregue-se”. Isto retoma, atualiza dizeres e sentidos que circularam bastante recentemente no Brasil, a exemplo do pronunciamento, em 2016, do então presidente interino Michel Temer:

 

Não fale em crise, trabalhe. Eu quero ver até se eu consigo espalhar essa frase em 10, 20 milhões de outdoors por todo o Brasil, porque isso cria também um clima de harmonia, de interesse, de... de... otimismo, não é verdade? Então... não vamos falar em crise, vamos trabalhar. (TVUOL, 2016)

 

Ou, ainda, a fala de Jair Bolsonaro que, enquanto maior autoridade do país, quando soube que o Brasil alcançava os 100 mil mortos por Covid-19, proferiu: “lamento as mortes, mas vamos tocar a vida”. Pereira e Ananias (2021) entendem que este “tocar a vida” desemboca numa necessidade de ser produtivo, de trabalho, de continuar movimentando a economia do país e privilegiando os interesses neoliberais; assim, de acordo com os autores, mais que um silêncio em torno dessas mortes, produz-se um “vamos trabalhar” diante delas. Já a fala de Michel Temer é compreendida por Garcia e Sousa (2018, p. 2893) como um “calamento da crise”, havendo uma “imputação de responsabilidade de sair da crise ao cidadão”. #ViverÉUmaEntrega, então, se filia a estas regulações disseminadas pela lógica do capital e da ideologia dominante, que tentam colocar o trabalho como um ato que “liberta”5 e responsabilizar os cidadãos por suas condições precárias tanto de trabalho, quanto de vida, de maneira que, a todo momento, é posto o sacrifício (ou a entrega) como gestos nobres para superar (a crise, as dificuldades, o desemprego, a fome etc.).

  Imagem 3Tweet e frame de um dos vídeos da campanha da Ifood.
Fonte:
https://twitter.com/iFood/status/1343998154526621697

 

Desse modo, como a própria campanha do Ifood formula, “viver ganhou um novo significado”, em que a vida é ressignificada e inscrita na estrutura neoliberal de forma que o sujeito passe a ser visto como aquele que deve “participar totalmente, se engajar plenamente, se entregar inteiro em sua atividade profissional” e, assim, ter a sua subjetividade “implicada na atividade que ele precisa cumprir” (NOGUEIRA, 2015, p. 214).

Em relação à formulação “parceiros de entrega” (ou “entregadores parceiros”), podemos estabelecer que há um silêncio sustentado pela/na expressão. Não apenas o silêncio que está presente em todo dizer, mas, especificamente, o silêncio que se torna apreensível pela “historicidade inscrita no tecido textual” (ORLANDI, 2013, p. 58): ao invés de “funcionários”, “servidores” ou “contratados” de entrega, temos “parceiros”. Tenta-se negar, aí, o contrato de trabalho com a empresa, dando lugar a um “vínculo” de parceria; a força de trabalho existe, mas, ao ser apagada do/no dizer, instaura sentidos outros para as relações trabalhistas, como se empregador e empregado tivessem, juntos, no mesmo nível de poder e, consequentemente, como se essa parceria implicasse uma escolha “boa para os dois lados”, apagando uma condição determinada pela formação social capitalista do Brasil contemporâneo.

Nogueira (2015, p. 27), em sua tese de doutorado, ao dissertar acerca do discurso da gestão — com certo de grau de informalidade na relação entre os trabalhadores —, compreende que “o que está em questão não é a superação das relações de poder dentro das empresas, mas a dissimulação dessas relações, por um mecanismo de ordem simbólica”. Além disso, em diálogo com Bernardo (2006), a autora afirma que o discurso empresarial anuncia uma mudança, mas, na verdade, ele visa a que as relações entre Capital e trabalho permaneçam como sempre foram. Com isso, conforme Nogueira (2015, p. 28), a tão difundida flexibilidade marca a sua presença muito mais no discurso do que nas situações de trabalho, tratando-se de um “‘discurso flexível’ que visa a negar a dura realidade imposta aos trabalhadores”. Se deslocarmos essa reflexão para o cenário em análise, entendemos que a relação entre Capital e trabalho não permanece tão igual assim já que, agora, com o acontecimento da uberização e os meios de conexão pautando os (des)vínculos trabalhistas, a noção de uma divisão no interior dessas associações (ou seja, a noção de que há uma hierarquia, chefes e subordinados) se dilui, se solve no protagonismo quase total da máquina. Por serem todos “parceiros”, é como se não houvesse classe, mas, sim, uma grande rede de colaboração na qual — e aqui entramos no nosso próximo enunciado — todos possuem, igualmente, o “poder de escolha”.

Assim, “tenha o poder de escolha” – formulação inscrita no site da 99Food – tem seus sentidos presentificados em diversas discursividades filiadas à lógica neoliberal. Especificamente no que diz respeito às empresas-aplicativo de delivery, dizeres como “escolha seu horário de trabalho”, “escolha o veículo que irá utilizar”, “escolha o tempo de serviço”, “escolha quando/se virá fazer entregas” etc. são bastante comuns e, novamente, responsabilizam o sujeito-entregador por seu sucesso, fracasso, acidentes que possa sofrer, contaminação e até a morte.

O funcionamento em questão pode ser compreendido através dos ensinamentos de Haroche (1992, pp. 220-221), que nos explica que, diferente da submissão do sujeito à religião, a submissão dele ao Estado acontece de maneira mais sutil, pois preserva a ideia de liberdade e autonomia; funda-se, então, “em nome dos imperativos jurídicos novos que exigem a noção de responsabilidade do indivíduo”, uma concepção de sujeito livre em suas escolhas, que controlaria a si mesmo. A liberdade do sujeito é posta, pela pesquisadora, como uma ficção: “o indivíduo é determinado, mas, para agir, ele deve ter a ilusão de ser livre mesmo quando se submete”. Orlandi (2007, p. 97) afirma que é nesse processo que “os sujeitos são pegos em cheio pelos modos como as instituições os individualizam”. É, justamente, por esse processo que as empresas e o próprio Estado se desresponsabilizam de qualquer adversidade que possa acometer os sujeitos (entregadores), mas, ao mesmo tempo, são essas as instituições que os controlam, que os determinam e os tornam, assim, “livres para se obrigar” (se obrigar a “escolher” um trabalho arriscado, com vínculos precários etc.). O “poder de escolha”, portanto, não se trata de um poder, mas de uma imposição disfarçada de liberdade.

3. Sobre uberização e relações de trabalho

“Muitos falam: ‘agora a gente é livre, a gente faz nosso próprio horário’. Mentira! Quem faz o meu horário são as minhas dívidas. Que trabalhador vai acordar às cinco da manhã e voltar depois da meia-noite, sete dias na semana, se a vida estiver tranquila?”, pergunta o líder antiuberização Paulo Lima (2021, n. p.), o Galo, que começou a trabalhar como motoboy para empresas-aplicativo de delivery depois do nascimento da filha, pagando uma prestação mensal de R$ 650 pela motocicleta. Integrante do movimento Entregadores Antifascistas, Galo é entregador de plataformas6 como UberEats, iFood e Rappi, algumas das mais populares no Brasil, e define a uberização a partir de uma história contada pelo pai, Roberto, que, chegando ao Centro de São Paulo no final dos anos 1980, avistou a placa “Registramos sua carteira. Entre aqui”. O acordo era vender 20 filtros d’água por mês, caso contrário, a empresa não assinaria a carteira de trabalho nem repassaria qualquer lucro ao trabalhador. Roberto, então, pegou os 20 filtros, dos quais vendeu 14. Voltando ao Centro, recebeu uma nova proposta: ele teria de vender outros 20 produtos em um mês para ter, como recompensa, o registro da carteira; ele recusou a investida: “não acho bacana, vocês não vão me dar nada por isso”.

— É isso, filho, que você fala nas suas lives? Isso que é a uberização?, perguntou Roberto a Galo.

— É isso mesmo, pai. Desse jeitinho mesmo, lhe disse o entregador.

Em outros termos, a uberização7 — elemento importante para compreender as condições de produção8 dos discursos das empresas-aplicativo de delivery — se caracteriza pelo mecanismo criado pelo ramo empresarial para transferir riscos e custos a trabalhadores autônomos. Essa transferência é realizada por meio de softwares e controlada pelas plataformas online de propriedade das empresas, na mediação entre os sujeitos-entregadores e os sujeitos-consumidores (ABÍLIO, 2017). Por isso, Natalia Zuazo (2018) argumenta que, atualmente, o software, base para a relação de trabalho intermediada por aplicativo, se transformou em um valioso commodity. Mas, no processo de transferir riscos e custos desde a plataforma digital até os sujeitos-entregadores, ocorre, de acordo com Abílio (2017), a ampliação de tempo e intensificação da força de trabalho, já que um trabalhador pode ter uma jornada que começa de manhã e termina à noite, por exemplo, assumindo diversas funções no posto, como o deslocamento do comércio até a residência do cliente e a operação de pagamento do serviço.

A uberização, ao contrário do que pode parecer, não é exclusiva da economia digital, movimentada por empresas-aplicativo de delivery como o Ifood, a 99Food e a UberEats; o embrião desse fenômeno apareceu há, pelo menos, quatro décadas — basta se lembrar do exemplo, narrado pelo pai do entregador Paulo Lima (2021), dos filtros d’água em 1980. Porém, a “viração”, é preciso observar, ganha ainda mais espaço com a “gig economy”, mercado formado pela multidão de trabalhadores minimamente vinculados a trabalhos instáveis e, no Brasil, Ludmila Abílio (2017) estabelece um marco que “abriu a porteira” para essa prática: a aprovação da lei “Salão parceiro – profissional parceiro”, pelo governo Michel Temer, em 2016, desobrigando proprietários de salões de beleza a reconhecer o vínculo empregatício com profissionais do setor, sejam manicures, depiladores, barbeiros, maquiadores, cabeleireiros e esteticistas.

Apesar do conceito partir da marca Uber, que passou a operar no Brasil em 2014, Abílio (2017, n. p.) defende que a uberização não apenas elimina o vínculo empregatício entre empregado e empregador, como significa “um novo passo na subsunção real do trabalho”, podendo se generalizar, nos próximos anos, para outros setores e relações de trabalho, hipótese com a qual concorda o entregador Paulo Lima (2021). O acontecimento da uberização, igualmente, marca a passagem do estatuto de trabalhador (com vínculo empregatício e, consequentemente, direitos trabalhistas entre empregado e empregador) para o de um “nanoempresário-de-si”, sempre pronto para atender à próxima demanda, a entrega de uma comida pelo app UberEats ou de uma encomenda pela plataforma Loggi, por exemplo, sem garantia mínima para essa subordinação9 (ABÍLIO, 2017).

Forma do capitalismo atual, o neoliberalismo é constituído por um conjunto de discursos e dispositivos determinantes para um novo modo de governo dos sujeitos a partir do princípio da concorrência (DARDOT, LAVAL, 2016). Essa norma, que há quase um terço de século transforma a sociedade, impõe aos sujeitos capitalistas, conforme os autores, uma competição generalizada, ordenando não apenas as relações econômicas, mas sociais de acordo com um modelo de mercado, no qual as desigualdades se tornam mais profundas e os sujeitos são levados a se identificar como uma empresa. Daí a noção de empreendedorismo se filiar, em uma formação social como a capitalista brasileira contemporânea, à ideia de que o esforço individual e a meritocracia levam ao progresso (ZUAZO, 2018).

Mas, afirma Natalia Zuazo (2018), contra a narrativa do herói individual, as startups, empresas de tecnologia, não chegariam a prosperar sem a intervenção pública, seja com o financiamento à pesquisa, seja com a flexibilização das leis trabalhistas. “O Estado financiou todas as tecnologias que fazem com que o iPhone de Jobs seja tão ‘inteligente’ (com internet, GPS, touch screen, Siri e o aplicativo pessoal ativado por comando de voz). Tais investimentos radicais não foram produzidos graças aos investidores de risco ou aos inventores de garagem”, aponta Zuazo (2018, pp. 27-28)10, para quem foi “a mão visível do Estado” que tornou essas inovações possíveis.

Ao mesmo tempo, se o que significa, em determinada formação discursiva, o sujeito-empreendedor é a inventabilidade, a flexibilidade, a proatividade e a capacidade de inovação, os entregadores, mão de obra ligada à ocorrência da “gig economy”, “não se enquadram nessas características”, já que entregadores de empresas como Ifood “não têm nenhuma possibilidade de intervir nas questões centrais do processo produtivo, como o valor de cada entrega, podendo, quando muito, se organizar com relação ao seu horário de trabalho” (ALVES et al., 2020, p. 92). Afinal, empresas-aplicativo, no cerne da uberização, funcionam com base em regras, critérios de avaliação (pontuação dada a entregadores pelo público, por exemplo) e métodos de vigilância (controle, via GPS, do percurso feito pelo entregador ou motorista) e, concomitantemente, não assumem exigências que poderiam constituir, legalmente, o vínculo empregatício. “Consumo, avaliação, coleta de dados e vigilância são elementos inseparáveis” (ABÍLIO, 2017, n. p.).

Assim, na contemporaneidade, em um cenário intensificado pelo acontecimento da pandemia de Covid-19, o empreendedorismo, na figura do “nanoempresário-de-si”, implica que o trabalhador assuma os riscos da própria atividade de trabalho (ALVES et al., 2020), o que nos leva a questionar a relação do empregado não apenas com o empregador ou com a empresa, mas com a própria categoria trabalho. Althusser (1999), em leitura dos clássicos marxistas, assume que as relações de produção no capitalismo são de exploração capitalista, a qual se dá pela extorsão de mais-valia a partir dos limites do salário pago ao trabalhador por um trabalho realizado em uma empresa. Para o autor, os trabalhadores (conjunto de pessoal) de uma empresa se dividem em três tipos, compreendidos pela função de cada “assalariado” na instituição:

a) funções de produção, sejam operários, peões e alguns técnicos (proletários);

b) funções de exploração, que não deixam de contemplar as funções de produção, sejam diretores de produção, engenheiros e técnicos superiores;

c) e funções de repressão, que podem se confundir ou não com funções de exploração, sejam contramestres, engenheiros, vigias recrutados etc.

Althusser (1999, p. 55) comenta, ainda, que, para definir o salário dos trabalhadores, o capitalista lhes cede “uma parte somente do valor produzido pelo trabalho assalariado”. Isto acontece porque o capitalista detém os produtos que somam (1) “o valor das mercadorias utilizadas, como matéria-prima, desgaste das máquinas, etc., na produção garantida pelo trabalhador” e (2) “um sobreproduto que, por sua vez, é dividido (de forma desigual) em duas porções, o salário cedido ao trabalhador e a ‘mais-valia’ extorquida ao trabalhador que o capitalista embolsa sem maiores formalidades”. O discurso do capitalista conseguiria deixar “todo o mundo contente” pelo fato de o capitalista ter arriscado o seu investimento, sendo o excedente da produção, o lucro, destinado a compensar esse “risco” assumido pelo empresariado.

O problema é que, partindo de uma concepção althusseriana do trabalho, fortemente ligada ao trabalho assalariado e ao quadro de pessoal de empresas (antes da “gig economy” e da investida do mercado global no software enquanto commodity), mas assumindo que a história do capitalismo é a história das metamorfoses do capitalismo (DARDOT, LAVAL, 2016), nos deparamos com o fato de que as empresas de tecnologia, hoje, “não são donas dos meios de produção como o eram os monopólios da Revolução Industrial. No entanto, são proprietárias dos ‘meios de conexão’. As plataformas se baseiam mais na participação do que na propriedade e nos dominam porque nós, os usuários, as escolhemos” (ZUAZO, 2018, pp. 24-25)11. Ao mesmo tempo, os sujeitos-entregadores que trabalham, agora, para empresas-aplicativo de delivery, não controlam os fatores de produção; não detêm capital de investimento; não exploram outros trabalhadores; e não obtêm lucro a partir de um investimento específico (ALVES et al., 2020). Assim,

Todo o aparato criado para mitigar o valor de trabalho, aliado à incapacidade do Estado de provê-lo e garantir condições decentes de ocupação, faz com que o empreendedorismo desponte como uma via de escape (...). Essa mitificação do empreendedorismo pode gerar um ambiente de incerteza e insegurança social, além de um processo de individualização em que cada sujeito passa a se perceber como desvinculado de qualquer projeto coletivo, erodindo as lógicas da solidariedade”.

 

É por isso que levantamos, aqui, a questão sobre as relações de trabalho significadas pelas empresas-aplicativo de delivery, o que passa, hoje, pelo acontecimento da pandemia do novo coronavírus e pela mobilidade dos sujeitos-entregadores na cidade pandêmica.

 

4. Cidade pandêmica e mobilidade de sujeitos-entregadores

As condições de produção operam como “panos de fundo” histórico-ideológicos dos discursos, uma vez que possibilitam a formulação e, ao mesmo tempo, orientam a interpretação do sujeito (PÊCHEUX, 1997). Igualmente, a cidade deve ser tomada como “pano de fundo” quando se evoca o espaço urbano, pois nesse espaço simbólico o sujeito citadino produz sentidos para si e para os “outros”, significando o urbano enquanto um sítio de significação incrustado na história (ORLANDI, 2004, 1999).

Por isso, o espaço, nas palavras do historiador francês Michel de Certeau (1998, p. 202), surge na coincidência com o que move, com o que produz movimento. A ideia é que o espaço (urbano) se produz pelo rastro que nele fazem os seus elementos constitutivos. “Em suma, o espaço é um lugar praticado. Assim, a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres”. O espaço urbano, que toma a forma da cidade capitalista contemporânea, mobilizada por sujeitos-entregadores, sujeitos-consumidores e empresas-aplicativo de delivery, por exemplo, é sinônimo de direção e velocidade, conforme Certeau (1998), e, principalmente, nós diríamos, está aberto à significação, significa e é significado pela relação com os seus habitantes, a partir da mediação da linguagem, entre sujeito (cidadão) e objeto (cidade).

No entanto, a crise sanitária inaugurada pelo aparecimento do novo coronavírus, encharcando os discursos com sentidos de pandemia no Brasil (ORLANDI, 2020), pode modificar, ainda que circunstancialmente, a relação significativa entre espaço urbano e velocidade (movimento), já que, por conta da doença Covid-19, os sujeitos foram orientados a não circular na e pela cidade: “se possível, fique em casa” — para citar uma formulação, um exemplar do discurso — é reproduzida muitas vezes por meios de comunicação e contas nas redes sociais digitais no período pandêmico.

Antes de prosseguir com a reflexão sobre a mobilidade urbana — implicada no encontro daquilo que tangencia, move e reverbera no espaço —, é preciso compreender por que a atual pandemia, provocando uma ruptura na formação social capitalista brasileira, pode ser lida como um acontecimento discursivo, o qual se dá na atualização de uma memória (PÊCHEUX, 2015, p. 53). A noção de acontecimento implica assumir que há, na formulação, uma série de pontos de deriva, uma vez que “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro”.

Com efeito, o acontecimento da Covid-19 vem perturbar os sentidos de pandemia, que passam a dominar as discursividades pela metaforização da ameaça e do susto global (ORLANDI, 2020), seja pela possibilidade de se contagiar (ou ver gente se contagiar) com o novo coronavírus e de desenvolver sintomas graves da doença, seja por problemas sociais decorrentes da crise sanitária, como a fome e o desemprego. O acontecimento da pandemia de Covid-19, então, recobre o espaço urbano, na forma da cidade pandêmica, de onde o sujeito enuncia e onde se “reconhece” citadino, agora, atravessado pelo possível contato com uma “ameaça” viral. Porém, se a velocidade é a marca, ou melhor, se dá forma ao espaço urbano contemporâneo, o que significa a cidade pandêmica, no espectro do “novo normal”, com as restrições de circulação impostas aos sujeitos citadinos na tentativa de conter o avanço do novo coronavírus e suas variantes? Aqui, vale a reflexão de Cristiane Dias (2016, pp. 158-160) sobre dois tipos de mobilidade, a partir da “materialidade digital”:

a) a mobilidade densa, que se produz em uma temporalidade específica quando o sujeito se move pela cidade, deslocando o seu corpo, colado ao espaço, de um ponto a outro, seja dentro de um bairro, de um bairro a outros, entre cidades, entre regiões, entre países, enfim. Há, nesse tipo de deslocamento, “aderência ao espaço geográfico”, já que a noção de mobilidade densa depende da organização (administrativo-urbanística) do espaço, fixando sentidos de circulação dos citadinos, por exemplo, em leis e regras de trânsito;

b) e a mobilidade rarefeita, por outro lado, que se encontra na possibilidade de “se mover sem sair do lugar, no fluxo das redes sociais digitais”. O corpo, com a explosão de sentidos pelo digital, não se desloca apenas de um ponto a outro, mas, sim, de um ponto para muitos, em um fluxo instantâneo de dados, pela temporalidade “rarefeita” ou “dispersa”. Assim, como espaço e tempo se associam, a espacialidade na mobilidade rarefeita não é geográfica, punctual, senão tomada por “fragmentários, luminosidades, displays touchscreen, uma espacialidade retigráfica, pela sua forma em rede”, tendo na velocidade a sua condição de produção.

Para Dias (2016, p. 162), é preciso recordar, ainda, que a mobilidade densa e a mobilidade rarefeita estão atravessadas na constituição do sujeito e do espaço, apesar do gesto teórico e analítico pela distinção dessas noções. E, como o espaço urbano e o espaço digital produzem uma forma material na cidade, a pesquisadora sugere que a conectividade (lançando mão da rede cartográfica pela qual o sujeito “tece” o espaço) significa o que é da ordem da mobilidade contemporânea. “O uso dos aplicativos em aparelhos móveis, como os smartphones, é também uma ferramenta fundamental da mobilidade digital e da significação do espaço retigráfico”, defende a autora, para quem a conectividade torna possível o ponto do “espaço geo-retis-gráfico” no contato/conexão com o sujeito, estruturado pela rede digital e pelas ruas — como o sujeito-entregador, tendo o seu “perfil” simbolizado pelo app, no qual se baseia, depois, o sujeito-consumidor no atendimento à sua demanda, tendo sido o serviço realizado pelo entregador no espaço urbano.

A partir do quadro conceitual e heurístico das mobilidades densa e rarefeita, enquanto forma material da mobilidade contemporânea, instalada por uma conectividade, do sujeito, do sentido e do espaço, podemos pensar que a cidade pandêmica não se desvincula do seu ritmo, não deixa de implicar a velocidade. Porém, esse espaço urbano afetado pela pandemia de Covid-19 não prescinde o espaço simbólico, discursivo, isto é, político, em que sentidos se dividem na não transparência da língua, em uma formação social capitalista, estruturada pela divisão das relações de trabalho, ou melhor, pela divisão social e técnica do trabalho (ALTHUSSER, 1999).

Dessa forma, enquanto sujeitos-consumidores de empresas-aplicativo de delivery “ficam em casa”, respeitando à orientação de instituições como a Organização Mundial da Saúde, em uma metaforização disso que é a mobilidade densa, do deslocamento do corpo no espaço, sujeitos-entregadores se expõem ao risco de infecção por Covid-19, ao mover-se pela cidade pandêmica. “No início da pandemia, mesmo com todos os protocolos de segurança ditados pelos órgãos de saúde, empresas que promovem entregas mediadas por aplicativos pouco ou nada fizeram para atenuar a possibilidade de contaminação de seus entregadores” (ALVES et al., 2020, p. 101). Os autores relatam que, devido à precarização do trabalho de entregadores na pandemia, o Ministério Público do Trabalho ajuizou ação em abril de 2020 obrigando as plataformas Rappi e Ifood a adotarem “medidas sanitárias, sociais e trabalhistas para proteção dos trabalhadores que prestam serviços a elas”.

O trabalho dos sujeitos-entregadores, então, coincide com a conectividade, de forma que os “operários” intervém no eixo da mobilidade densa, circulando com bags pela cidade pandêmica, e na mobilidade rarefeita, sendo inscrita na tela do sujeitos-consumidores a rota que os entregadores “tecem” no espaço geo-retis-gráfico, enquanto realizam a entrega da demanda contratada. Vemos, enfim, que as relações de trabalho entre empresas-aplicativo de delivery e sujeitos-entregadores, no âmbito da uberização, requerem uma discussão mais aprofundada sobre a constituição do sujeito de dados e o controle da subjetividade pela tecnologia do digital.

 

5. Empresas-aplicativo de delivery e constituição do sujeito de dados

 

Vou ser sincero: o problema desses aplicativos é que eles também são grandes coletores de dados [...]. Eles querem saber: quanto tempo o Galo aguenta trabalhar por dia sem reclamar? Quanto tempo aguenta ficar sem comer? Quanto tempo aguenta ficar na chuva ou no calor? Quando ele se machuca? Quantos dias fica em casa? Eles estão montando um gráfico da classe trabalhadora – não só dos entregadores, mas de todos (LIMA, 2021).

 

Na citação acima, vemos que Paulo Lima (2021) coloca os aplicativos como “grandes coletores de dados” e que estão, desse modo, extraindo informações diversas dos trabalhadores e montando um “gráfico da classe trabalhadora”. Diante dessa colocação, do corpus analisado e de todas as discussões trazidas ao longo do artigo, consideramos pertinente tecer algumas considerações acerca do sujeito de dados na tentativa de compreendermos o seguinte: mais do que “colher dados” de seus usuários e entregadores, essa prática de “entrega” faz parte do modo como os sentidos estão sendo produzidos na contemporaneidade — atravessada pelo digital. E é por essa perspectiva que Cristiane Dias (2018, p. 168) pensa “as formas históricas de assujeitamento na sociedade digital”, a partir da qual formula a noção de sujeito de dados, a que vamos nos deter nesta seção.

Dias (2018) não nos apresenta as suas reflexões acerca do sujeito de dados sem antes retomar as noções de forma-sujeito (em referência a Pêcheux em “Semântica e Discurso” [1997]) e de sujeito religioso e sujeito de direito (estudadas por Haroche em “Fazer dizer, querer dizer” [1992]). A autora, então, nos explica que Pêcheux (1997, p. 150) examina a estrutura discursiva da forma-sujeito, ou seja, “da forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”. É a partir dessa estrutura que o assujeitamento, sob a aparência da autonomia, é dissimulado. Assim, identificando-se a uma formação discursiva, na “dissimulação” da dependência com a memória discursiva, “o sujeito ‘esquece’ aquilo que o determina” (DIAS, 2018, p. 52). A forma-sujeito, portanto, é a unidade imaginária do sujeito e é por meio dela que ele se identifica (ou não) com a formação discursiva que o constitui.

Com isso, Dias (2018, p. 52) se questiona sobre a “forma sob a qual o sujeito é produzido no lugar deixado vazio” e é nesse ponto que a autora chega aos estudos de Haroche (1992, p. 57), a qual entende que a forma de sujeito produzido neste lugar deixado vazio é a do sujeito religioso — submetido à ideologia cristã. O sujeito religioso, de acordo com esta última autora, é progressivamente substituído pelo sujeito de direito, uma vez que os “imperativos da expansão econômica vão conduzir a uma redefinição de sujeito”. Desse modo, ao avançar na leitura de Haroche, Cristiane Dias (2018, p. 54) produz um deslocamento fundante para uma teoria do sujeito de dados:

 

Se na análise que propõe Haroche (idem) fala-se do progresso do jurídico sobre o religioso, aqui, tratarei do progresso do digital (no qual o econômico está embutido) sobre o jurídico. Não porque o jurídico não tenha função, mas porque há um des-arranjo da função do jurídico como mediador da relação do sujeito com a sociedade, na forma da lei, já que a própria lei precisa criar outros parâmetros para enquadrar aquilo que não cabe em seus artigos e códigos. Já o econômico encontra um re-arranjo com as tecnologias digitais, pela coleta e capitalização de enormes quantidades de dados, produzindo, com isso, uma personalização do “consumidor de novo tipo”. A informação sobre os sujeitos passa a ter um valor econômico concreto mais do que um valor simbólico.

 

O digital traz, portanto, uma mudança (e não uma anulação) em como o jurídico e o econômico são concebidos e nos afetam, produzindo efeitos na “constituição do sujeito” de tal maneira que a forma sujeito histórica capitalista “encontra-se desarranjada pelo digital ou pelos sistemas e dispositivos lógico-digitais”, de acordo com Dias (2018, p. 58), “estabelecendo um novo tipo de relação entre o sujeito e o social, mas também entre o sujeito e o jurídico, atravessada pelo econômico”. Assim, é possível entender que esse tipo de coleta de dados praticada pelas empresas-aplicativo de delivery (constituídas pelo digital) se alicerça na apreensão do jurídico (agora desarranjado) e na penetração do econômico. Esse gesto implica não apenas uma captura de informações que podem ser usadas para vender um produto (ou, no caso da relação entre aplicativos e entregadores, para controlar o tempo e a localização de trabalho) mas, também, afeta as maneiras como o sujeito se identifica, se filia ideologicamente e se inscreve em determinadas formações discursivas.

Nesse sentido, vale recuperar o que Haroche (1992, p. 221) aborda sobre a ficção de liberdade do sujeito de direito. Esse sujeito, como vimos anteriormente, tem a ilusão de ser livre. O mesmo acontece com o sujeito de dados: ele se submete ao digital acreditando ser por “livre escolha” e, mesmo que decida “não entrar” no digital — imaginemos que isso não seja possível, pensando o digital enquanto materialidade —, ele é punido, pois o digital já nos constitui de modo que é impossível escapar dele. Especificamente sobre os entregadores de empresas-aplicativo de delivery, constituídos enquanto sujeitos de dados, destacamos dois pontos:

1) o primeiro tem relação com a máquina, pois a máquina que o entregador usa para conseguir realizar o seu cadastro e dar andamento às entregas é a mesma que, através do controle possibilitado pela mobilidade rarefeita, o denuncia caso ele não cumpra um certo percurso no tempo determinado ou participe de manifestações, por exemplo. A máquina que o admite é a mesma que o bloqueia e a tecnologia que o permite trabalhar é a mesma que o controla, que o castra. Isso, em nossa aposta, se relaciona com um aspecto totalizante da máquina que, dirigida por algoritmos e dados considerados “neutros”, opera, ideologicamente, como uma lei que não falha (“todos são iguais perante o algoritmo”12);

2) o segundo ponto se refere à subjetividade. Alves et. al. (2020, p. 93) entendem que, em um mercado de trabalho mais flexível, as estratégias de “controle de subjetividade operam de forma mais eficaz” já que a “ameaça de desemprego paira sobre o assalariado, responsabilizando-o também por sua eventual condição de desempregado”. Acrescentamos que, para o sujeito de dados, essa eficácia é ainda maior uma vez que, através do celular, “todos podem trabalhar”, “todos podem realizar entregas” e, sob essa lógica, não existe “ameaça de desemprego” (o desemprego já é uma realidade). O vínculo, então, é flexível não porque o entregador pode ser demitido a qualquer momento, mas, sim, porque não há direitos, segurança, horário fixo etc. Dessa forma, a “ameaça do desemprego” é, na verdade, a ameaça do bloqueio por um aplicativo (pela máquina) e a responsabilidade pela “eventual condição de desempregado” fica ainda mais drástica já que a “eventual condição” se torna a de “desocupado com um celular em mãos”, aparelho pelo qual “só não empreende quem não quer”.

Diante disso, cabe ressaltar, ainda, que o celular, na sociedade constituída pela forma-sujeito de dados, não se constitui somente como um dispositivo de comunicação ou lazer; ele é, sobretudo, um sistema de trabalho — não é apenas o corpo que serve de “mão de obra”, é o corpo com sua máquina (ou a máquina com o seu corpo). Com efeito, a responsabilização por uma falta de renda do trabalhador se manifesta de maneira mais definitiva já que esse sujeito, individuado por um “Estado econômico-tecnológico” (DIAS, 2018, p. 168), é levado a acreditar que a tecnologia, por um processo ilusoriamente sem falhas, assegura uma ocupação (ele poderia ser desde um desenvolvedor de aplicativos até um entregador) para qualquer um e que cabe somente a ele conquistá-la. É, portanto, a “infalibilidade de um pensamento tecnológico sem contradições” que, de acordo com Dias (2018, p. 55), permite este tipo de funcionamento e produz um sujeito “universal personalizado, para o qual o princípio da não contradição é sustentado pela produção de pequenos sistemas lógico-digitais universalizantes”. Esses sistemas operacionais, por fim, não apenas modificam, mas regulam e gerenciam o modo como vivemos e somos subjetivados.

 

6. Gesto de conclusão

Situamos, neste gesto de análise, fundado em princípios e procedimentos da Análise de Discurso, que as empresas-aplicativo de delivery, a exemplo de Ifood, 99Food e UberEats, significam as relações de trabalho como não relações, por meio de vínculos trabalhistas extremamente frágeis, denominados por elas de “parcerias”. Esse modo de conceber o trabalho tem relação com o fenômeno da uberização, o qual, através da tecnologia, torna as empresas proprietárias dos “meios de conexão”, baseando seu domínio, agora, mais na participação (dos usuários) do que na propriedade dos bens. Ao mesmo tempo, a partir do enunciado #ViverÉUmaEntrega, vemos que o tipo de relação de trabalho entre empresas de delivery e sujeitos-entregadores é assimétrica: a empresa se nega a fornecer garantias de trabalho, seguro de vida, salário fixo e outros direitos básicos aos seus “parceiros de entrega” e os entregadores, por sua vez, precisam se submeter ao trabalho, render-se às jornadas exaustivas, em uma palavra, precisam “entregar-se” a essa condição de produção.

Assim, quando lançamos mão dos gestos teóricos e analíticos, assumindo a formação social capitalista no Brasil contemporâneo, atravessada pelo acontecimento da cidade pandêmica, entendemos que os riscos enfrentados pelos sujeitos-entregadores devido ao novo coronavírus se tornam ainda maiores. Nesse sentido, uma paráfrase possível para #ViverÉUmaEntrega poderia ser “Viver é entregar a própria vida”. Aqui, cabe mencionar que essa entrega de vida pode se associar, significativamente, tanto aos perigos físicos (de contaminação viral e de acidente de trabalho, por exemplo) quanto àqueles menos palpáveis, mas que não são da ordem da banalidade, ligados à concessão de dados e à submissão a um Estado algorítmico.

Por fim, como mencionamos no início do artigo, nosso arquivo e corpus não nos estacionam; a análise se encerra, mas também se abre aqui na medida em que outras perguntas nos capturam, por exemplo, quais vidas são essas disponíveis para a entrega? A quais vidas a própria vida é negada? Nesse processo, lembramos, por exemplo, dos filósofos Giorgio Agamben (2010), que escreve sobre as vidas consideradas indignas de serem vividas, e Judith Butler (2016), que nos mostra que algumas vidas são tomadas como “populações perdíveis”, que podem ser precarizadas por já terem sido “enquadradas” como perdidas e sacrificadas. São inquietações que nos atravessam e que encontraram diálogo com as discussões trazidas aqui, necessitando, ainda, de maiores elaborações e articulações para ganharem forma.

 

Referências

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Data de Recebimento: 31/03/2021
Data de Aprovação: 27/07/2021


1  Para Marcio Pochmann (2021), as relações de trabalho no Brasil contemporâneo são diferentes das de 30 anos atrás devido à “destruição da sociedade urbana industrial”, o que leva a uma sociedade de serviços fundada em um “novo sujeito”, desligado da sociedade constituída por uma classe operária como aquela que conduziu ações sindicais nos anos 1970 e 1980, por exemplo.

2  Para Althusser (1999), a noção de formação social recobre uma “sociedade concreta”, construída historicamente e individualizada, particularizada pela dominância de um modo de produção (como o capitalista) sobre outros.

3  Guilhaumou, Maldidier e Robin (1994) e Zoppi-Fontana (2005), por exemplo, tratam da relação entre arquivo e materialidade da língua.

4  Esta forma de nomear o material circula em redes sociais, aplicativos e sites das empresas. Aqui, deixamos os endereços dos sites nos quais comparecem tais nomeações, seja Ifood: https://institucional.ifood.com.br/; 99Food: https://food.99app.com/pt-BR/; UberEats: https://www.uber.com/pt/pt-pt/deliver/, todos acessados em: 29 jul. 2021.

5  “O Trabalho Liberta” é um dizer inscrito no portão do campo de concentração/extermínio de Auschwitz, onde o trabalho forçado era uma prática comum.

 

6   Natalia Zuazo, no livro “Los dueños de internet” (2018), explica que as plataformas digitais prometem conectar duas partes, como empresas alimentícias e sujeitos-consumidores, por meio de sujeitos entregadores. Essas empresas, por fora, são baseadas na construção de dispositivos como hardware e software, mas, em termos econômicos, são companhias que criam um competitivo espaço de negócios.

7  A questão da uberização, enquanto fenômeno contemporâneo, é bastante complexa e este trabalho não tem a pretensão de esgotar a discussão sobre o tema. Mas acreditamos que, a partir do aparato teórico aqui desenvolvido, análises interessantes sobre o corpus, atravessado pela uberização e no entremeio da disciplina de Análise de Discurso, são possíveis.

8  Entendemos condições de produção, a partir de Pêcheux (1997), como as circunstâncias sócio-históricas de produção dos discursos, incluindo os lugares sociais de quem enuncia e as relações (tensas) de força entre os já-ditos que anteriorizam determinados dizeres.

9  É preciso pontuar, segundo Abílio (2017), que o impacto da urbanização sobre os trabalhadores leva a novas organizações políticas (resistência), com sindicatos criados e greves deflagradas, a exemplo das manifestações mundiais em 2016, contra a precarização do trabalho em empresas-aplicativo, e, mais recentemente, em 2020, com a greve dos entregadores de app em várias cidades do Brasil na luta por direitos básicos na pandemia de Covid-19.

10  Tradução nossa: “El Estado financió todas las tecnologías que hacen que el iPhone de Jobs sea tan ‘inteligente’ (internet, GPS, pantalla táctil, Siri y la aplicación personal de activado por voz). Tales inversiones radicales no se produjeron gracias a los capitalistas de riesgo o los inventores de garaje (...). Fue la mano visible del Estado la que las hizo posibles”.

11  Tradução nossa: “no son dueñas de los medios de producción como lo eran los monopolios de la Revolución Industrial. En cambio, son propietarias de los ‘medios de conexión’. Las plataformas de hoy se basan más en la participación que en la propiedad y dominan porque nosotros, los usuarios, las elegimos”.

12  Esta formulação foi proferida pela professora Cristiane Dias em uma reunião realizada no dia 11 jun. 2021 organizada pelo grupo LIDI (Leitura, Interpretação e Discurso na Imprensa).