Completude e oscilações do olhar: Performance de Iemanjá à beira mar do Rio Vermelho, Salvador-Ba


resumo resumo

Jurema Castro Couto Caldas
Liliane Vasconcelos



Introdução

A pesquisa acadêmica tem por requisito o rigor acadêmico e a precisão normativa, o que pode significar para um ser que percebe a vida e suas relações pelas lentes da arte, bem como vivencia o mundo e a natureza das coisas também por este prisma, uma percepção restritiva de liberdades. Esse trabalho é parte de uma pesquisa de mestrado1 onde a arte e a cidade são elementos imprescindíveis para o desenvolvimento da pesquisa. A arte traz em seu acolhimento um lastro infinito de possibilidades que viabilizam um espaço de originalidade e criatividade, trazendo novas formas de interação entre o ser humano e a cidade.

A partir de estudo dos autores e suas obras indicadas neste artigo identificamos perspectivas teóricas, as quais denominamos como: o segundo invisível, a apreciação estética da obra de arte, sensações e percepções imateriais, teoria dos afetos e toda sorte de representações entre simbólico e imaginário, onde a arte e a cultura marcam o território e fomenta territorialidades.

Segundo Claude Raffestin (1993) em seu livro, “Uma geografia do poder'', os conceitos de território e territorialidades são tradicionais na Geografia. Salienta-se que nas últimas décadas a potência e a velocidade das mudanças em âmbito geral, em todos as esferas da existência favoreceram de forma irrefutável a complexidade e o engrandecimento de tais conceitos.

Para Raffestin (1993,p.143) o território é a “apropriação concreta ou abstrata do espaço por um ator sintagmático”. Sendo para ele, um ambiente político onde um ou mais atores sociais experienciam intermediários pelas relações de poder. Esse poder não é apenas do Estado, mas o poder existente em toda e qualquer configuração organizacional. Enquanto a territorialidade é muito mais que uma singela convivência entre o indivíduo social e o território, considerando para além da delimitação de fragmentos particulares existe indubitavelmente a sociabilização entre estes atores sociais. Dessa maneira, a territorialidade seria "um conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo em vias de atingir a maior autonomia possível, compatível com os recursos do sistema" (Raffestin, 1993, p.160). Levando em consideração a dinâmica e natureza de fatores socioculturais por hora atuando como símbolo, imagem, alegoria ou metáfora; o que poderia identificar diversas espécies de territorialidades, desde as mais simples às mais complexas, onde a temporalidade é fator determinante para as territorialidades.

Nesse sentido, considerando a análise feita sobre a arte na cidade contemporânea, a pesquisa da arte à beira mar foi realizada no espaço compreendido no perímetro do Monumento Pombas do Centro da Ancestralidade de Mestre Didi (escultura) até o antigo Mercado do Peixe, atual Vila Caramuru, conforme mostra a figura abaixo:
 


Figura 1 – Localização da área em estudo Fonte: Google Earth, 2019. Elaboração: Jurema de Jequiriçá.

 

O Rio Vermelho, bairro de Salvador, é conhecido como palco de manifestações artísticas, a despeito de artistas de rua e feiras de artesanato, as quais ocorrem em maior demanda nos finais de semana. Nesta esteira de pensamento, o tripé composto pela arte, cidade contemporânea e afetividades constitui a matriz de todas as possibilidades para o proposto objeto de investigação da presente pesquisa. Vale ressaltar, que ao se tratar de arte e cidade e afeto, consideramos que as sensações despertadas pela natureza, pela obra de arte, pelo encontro harmônico com o co-cidadão presentes nos espaços públicos da cidade configuram-se como possibilidades de afetos na cidade. Nesse cenário, a arte, a cidade e as emoções encadeiam ou desencadeiam intuições, sentimentos e sensações, funcionando como um grande ecossistema de percepção e afetos. Spinoza (1632-1677) é o expoente na elaboração de uma teoria dos afetos, de maneira a perceber sua natureza e a sua dinâmica nos corpos. Trata-se de assimilar como a dinâmica de tais afetos é capaz de viabilizar uma política poética, que concede aos corpos um movimento singular que criam novas maneiras de transitar na vida e no mundo a partir dos atravessamentos afetivos.

Neste processo de estudo e investigação ocorreu o desdobramento do tema, sendo eu mesma a obra de arte performática da representação de Iemanjá, realizada em seu dia expressivo e comemorativo (2 de fevereiro de 2019). A performance artística de Iemanjá ocorreu à beira mar na praia da Paciência, no Rio Vermelho, em Salvador. A metodologia escolhida para coleta de dados se deu a partir do método qualitativo, considerando de maneira igualitária três aspectos que se relacionam: os sujeitos, o ambiente e as situações, momentos de interação com a obra de arte e /ou a Performance de Iemanjá, promovendo também, um estudo do processo2 tendo sempre um ponto de vista humanizado aplicado durante a mesma.

 O corpus da pesquisa está embasado nas vozes de vários teóricos que dialogam sobre a cidade e o seu imaginário, a saber: O que vemos, o que nos olha (2010); de Georges Didi-Huberman; Performance, uma introdução crítica  de  Marvin Carlson (2010); A escritura e a diferença de  Jacques Derrida (2019); Imaginários urbanos de Armando Silva (2011); Uma história da cidade da Bahia de Antônio Risério (2000);  Paisagens Urbanas de Nelson Brissac Peixoto (1996); Imaginários Urbanos de Nestor Garcia Canclini (1997); Uma filosofia da imanência dos afetos de Benedictus Spinoza(2020) dentre outros.

O artigo dialoga com os autores supra mencionados entre conceitos, conteúdos e referências bem como interpretação e expansão de novos horizontes. Neste sentido, os autores contribuem pensar a cidade, o imaginário, os afetos e a arte a partir de uma perspectiva multicultural no qual o olhar é compreendido para além das aparências, ele transcende e se comunica entre o que vemos e o que nos olha num segundo invisível.

Para Didi-Huberman, (2014, p. 169) dentro da sua fábula filosófica, apenas a experiência visual aurática conseguiria ultrapassar o dilema da crença e da tautologia. O autor observou diferentes ações em relação ao homem de crença e ao homem da tautologia. O primeiro, traz em si a crença de querer sempre ver algo mais do que se vê, ir além em oposição, por assim dizer em relação ao segundo que se propõe a ver nada mais ou além do que esteja à sua frente. O segundo invisível, entre o que vemos e o que nos olha: É quando em sincronia resgata-se o âmago em seu íntimo das coisas e pessoas. É quando ver ultrapassa o olhar, quando este transcende, sendo possível sentir e perceber a vibração e frequência das coisas, onde a Performance de Iemanjá foi um divisor de águas para este entendimento e experiência do vivido enquanto mecanismo da prática como pesquisa, para além das palavras.

O tema é pertinente e atual e justifica-se através da arte e de sua relação com a cidade contemporânea, bem como o da busca de um olhar significativo, crítico e reflexivo das relações pessoais e coletivas. A performance é entendida neste trabalho como uma modalidade artística híbrida, isto é, que pode mesclar diversas linguagens como teatro, música e artes visuais, e traz como característica a mistura desses elementos podendo ocorrer em diversos lugares, como no caso do presente trabalho que traz a rua, o espaço público como local de atuação e observação.

O objetivo é entender como se constitui a arte neste território da beira mar do Rio Vermelho, que é sagrado e profano, bem como analisar como essa arte influencia o sujeito urbano e constitui o seu imaginário coletivo. Onde a arte potencializa e transforma o território afetivo ao olhar e as percepções, além de permitir novos olhares antes imperceptíveis, desprovidos de arte. Pois como bem definiu Ferreira Gullar na Feira Literária de Paraty de 2010 “A arte existe porque a vida não basta” traduz toda a transcendência que a arte oportuniza à existência.

Assim, o problema central estava pautado em perceber como a arte à beira mar se manifestava no dia de Iemanjá, trazendo questões sobre os corpos ali presentes e suas funções no espaço urbano que se modifica para a festa do 2 de fevereiro, sendo o espaço público o local das atividades urbanas que integram as práticas econômicas e culturais. Armando Silva (2011, p.24) destaca que:

 

É assim que o urbano da cidade se constrói. Cada cidade tem seu próprio estilo. Se aceitarmos que a relação entre coisa física, a cidade, sua vida social, seu uso e representação, suas escrituras, formam um conjunto de trocas constantes, então vamos concluir que em cada cidade o físico produz efeitos no simbólico: suas escrituras e representações. E que as representações que se façam da urbe, do mesmo modo afetam e conduzem seu uso social e modificam a concepção de espaço.

 

A partir da percepção das relações entre território e espaço, obteve-se como resultado que as diferentes percepções e olhares relacionados a performance representativa de Iemanjá se diferenciam à medida que o sujeito demonstrava sua fé na divindade ali representada, onde o mar se tornou ponto de encontro para a materialização dessa devoção e exercício da fé, pois, ainda que os presentes fossem entregues na Casa de Iemanjá, localizada na calçada da orla da praia, muitos optaram pela entrega na própria moradia da sereia, o mar, onde se depararam com sua representação simbólica por meio da performance, onde legitimamos que a arte é o caminho do meio entre o território e as territorialidades.

O caminho do meio é compreendido, a partir de Jacques Derrida que traz um pensamento sobre as relações entre tempo, espaço e a possibilidade do devir, vir a ser isso e aquilo, ou seja, um futuro em deslocamento, que perpassa pela différance. A différance não é “nem um conceito nem uma palavra”, funciona como “foco de cruzamento histórico e sistemático” reunindo em feixes diferentes linhas de significados ou de forças.

A différance proposta por Derrida (2019) pode ser compreendida enquanto a metáfora, no sentido de absorver a cultura, onde o presente, o passado e o futuro se cruzam, trazendo uma ficção espaço- temporal, onde “A experiência da obra se faz necessariamente no tempo” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p.66). Diante dessas concepções, a arte será o fio de Ariadne dentro do labirinto, ou seja, o caminho do meio que viabiliza a différance que define Derrida (2019) um futuro em deslocamento.

Nesse sentido, a arte é fundamental para a urbe, porque ela identifica, territorializa, e torna-se um meio potente para que os transeuntes urbanos se expressem e se relacionem com a cidade.

 

1. As águas entre o sagrado e o profano

 

A cidade do Salvador possui um misticismo antropológico inerente a sua constituição, onde as religiões de matriz africana possuem lugar de destaque. Dentre as várias manifestações cultuadas nesta urbe, o culto à Iemanjá3 possui distinção nas festividades do calendário baiano, legitimando a tradição.

Para Eric Hobsbawm (2008) as tradições são inventadas, criadas em função de dados ou fatos históricos que se constituem como tal, vinculados a um passado que também lhe legitima a tradicionalidade.

 

Por “tradição inventada’’ entende-se um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente uma continuidade em relação ao passado. (HOBSBAWM, 2008, p.9)

 

A cidade de Salvador não pode subestimar o passado e seu contexto histórico e cultural bem como as preciosas contribuições que as religiões de matriz africana entre a umbanda e o candomblé fomentaram para a constituição de hábitos, costumes e identidades. Vale ressaltar que a capital baiana, de acordo com o censo do IBGE de 2010, é a cidade mais negra do país. A reverência à orixá é uma prática muito antiga para as religiões de matrizes africanas, numa perspectiva que incorpora representações simbólicas e ritualísticas. Como bem definiram Sàlámi e Ribeiro (2011, p. 75-76), sobre o culto a orixá Iemanjá

 

Seu metal é a prata. Seus símbolos incluem o mar, as embarcações, o coral, as conchas e a estrela dos mar, os fósseis marinhos; óta (pedra de assentamento); ìrùkèrè (cauda de animal que, após preparo artesanal e mágico, é carregada por sacerdotes e reis como sinal de realeza e poder); búzios.

 

Sendo estes objetos representativos do orixá, onde cada qual possui suas peculiaridades. Onde seus adeptos e fiéis fazem reverência entre cantigas, orações, flores ao mar, vestimentas, contas e colares, quitação de promessas e ainda pedir proteção e livramento compartilhados afetuosamente entre devoção e fé.

A festa de Iemanjá é uma das celebrações populares de Salvador que cultua um orixá. Além de ser uma importante data no calendário dos soteropolitanos, a cerimônia vem se mantendo e se fortalecendo ao longo dos anos. A celebração de Iemanjá teve suas origens no Dique do Tororó, sendo posteriormente levada ao Rio Vermelho por pescadores locais, ressignificando o território do Rio Vermelho, convertendo este território como espaço sagrado para os devotos das religiões de matriz africana que possuem uma representação significativa neste dia, tendo como ponto alto da celebração a entrega dos presentes para Iemanjá, realizados pelos pescadores em alto mar.

O território está para além de um espaço definido pelo Estado, pois também envolve relações de poder e identifica posse. Fuini (2015) traz uma interpretação de território a partir do pensamento de Milton Santos:

 

 

Para Milton Santos, o território pode ser visto como uma materialidade (configuração territorial) cuja apreensão por meio dos sentidos caracteriza-o como paisagem. Como uma forma política e econômica a caracterizar o espaço, categoria, objeto e totalidade social, o território contém subespaços que seriam as regiões. (FUINI, 2015, p.266)

 

Em algumas versões das histórias contadas por pescadores locais o território do Rio Vermelho se constitui no imaginário dos moradores como um lugar sagrado onde possui a casa de iemanjá, o mar onde se reverencia a rainha do mar. Segundo Antonio Risério (2011) a importância da relação entre o mar e a cidade é antiga: Salvador é uma cidade talássica. Uma cidade que desenvolveu intensamente, em todos os sentidos e nos seus diversos estratos sociais, o gosto e o hábito das coisas do mar. A Bahia antiga exibe construções batidas pela maresia (RISÉRIO, 2011, p. 69). Neste cenário, o mar em Salvador é formador de território e territorialidades e não só no passado, como também no presente, a cidade cheira a maresia e tem no mar o lugar sagrado para o povo de santo. A origem dos festejos para Iemanjá no Rio Vermelho é imprecisa, mas segundo relatos de pescadores eles existem na cidade desde a década de vinte.

 Uma versão conhecida é que o presente de Iemanjá ocorreu inicialmente quando pescadores não estavam conseguindo pescar uma quantidade significativa de peixes. Diante dessas circunstâncias ofereceram presentes a Iemanjá, a rainha das águas, que aceitou de bom grado, tornando farta a pescaria, por conseguinte. É relatado também que havia uma missa rezada pela manhã e o presente era entregue ao mar à tarde, mas por questões de desentendimento entre os padres e os pescadores a missa foi suspensa do ritual, ficando apenas as oferendas ao mar. Entretanto no dia a dia dos pescadores, a religião católica e o culto das religiões de matriz africana se fazem presente em função também da proximidade entre a Igreja de Santana e a Casa de Iemanjá. Diante disso, percebemos que os pescadores são de suma importância para a construção histórica e cultural do bairro do Rio Vermelho, e para a concepção do ritual de fé e religiosidade, que envolve os preparativos do festejo.

É percebido que o Rio Vermelho é um bairro de muitas manifestações culturais e artísticas, além de carregar um grande sincretismo religioso. Assim, o 2 de fevereiro não é apenas marcado pelo culto a mãe d'água e sua parte sagrada, pois há também a sua característica profana. Essa dualidade já é marcada por outras festas de largo em Salvador, e se manifesta no de 2 de fevereiro através das mais variadas festas que ocorrem em todos o espaço delimitado aos festejos, da venda de adereços sagrados que se misturam a bebidas e comidas não ligadas ao culto da Orixá; restaurantes e hotéis que vendem ingressos, oferecendo combos com direito a feijoada, rodas de samba e camisas, em uma espécie de festa paralela de caráter VIP, desvinculada do caráter sagrado, mas com existência em função deste. Nas ruas mais afastadas da orla é também visível a parte profana, onde as pessoas geralmente se encontram para beber, conversar, dançar ao som de paredões ou rodas de samba, sendo um prelúdio do carnaval. 

E assim o Rio Vermelho a beira mar na cidade de Salvador tem nesse espaço uma relação harmônica de convivência pacífica entre o sagrado e o profano, onde ambos fazem parte das tradições locais, cada qual a seu modo, a seu tempo e com suas devidas representações simbólicas e imaginárias. Porém, vale ressaltar que essa ideia harmoniosa só é possível em dias de festividades de Iemanjá no Rio Vermelho, pois os filhos e filhas de terreiros de candomblé ainda são discriminados na cidade. 

A performance é uma linguagem artística que envolve o corpo como forma de ligação entre o artista e o público, combinando diversas linguagens e possuindo seu próprio tempo que é instaurado através da performance. Assim, a instauração da performance ocorre através da presença física, onde o corpo é o sujeito e objeto da própria arte, viabilizado pela captação do olhar entre performer e audiência.    

A performance de Iemanjá conseguiu traduzir diversas alternativas de expressão por meio de vibrações, energias, olhares e gestos dos mais simples como jogar uma flor ao mar em agradecimento, molhar os pés na água salgada ou adornar o cabelo com uma flor.  As pessoas que transitavam ali se enveredavam em tons de azul e branco, havia vendedores de flores, alfazemas e fitas, diversas manifestações de matriz africana, os chamados “banho de pipoca”, rezas com ramos de folhas específicas para mau olhado, e tantas outras sutilezas e demonstrações de admiração e carinho para com Iemanjá. 

Estas compreensões que perpassam o corpo, a arte e a estética, são sensivelmente captadas pelo olhar. As celebrações ocorridas neste evento são muito simbólicas e representativas para a cultura baiana, assim como os discursos e expressões observadas numa tentativa de compreender a tradição que consagra o espaço, independente de sagrado ou profano. O que realmente importa é a fé e a devoção, o respeito ao invisível, ao imaterial, e a Iemanjá.

Nesta percepção, a diversidade impera livremente em um espaço público a céu aberto, com toda plasticidade das imagens e sons do mar, dos cânticos, das pessoas e dos murmurinhos de fé. A performance viabilizou a apropriação da Iemanjá e a sua reconstrução no território à beira mar do Rio Vermelho.

Importante destacar que por descrever fragmentos de história e da história cultural em seu território urbano que repercute por todo o Brasil e exterior,  a festa de Iemanjá foi merecidamente reconhecida enquanto Patrimônio Cultural de Salvador, haja visto que após décadas de existência, a festa só ganha  mais  adeptos,  frequentadores assíduos, curiosos, turistas e legitima-se no tempo e com o tempo, sendo uma belíssima explosão de cultura, tradição e fé do povo baiano, que transcende a cultura local, levando a Bahia a ser conhecida por sua manifestação cultura nacional e internacionalmente. Interessante perceber que o reconhecimento da festa como patrimônio cultural de Salvador além de valorizar a cidade e a cultura de origem africana, a cidade se vê e reconhece cada vez mais negra. Se lembrarmos como bem definiu Jocélio Teles (2005, p. 90) que “O Estado apresentava-se como uma espécie de mediador entre a secular tradição baiana- leia-se de origem africana- e a emergente modernidade televisiva”. Trata-se, portanto, de um reconhecimento que está pautado também no incentivo à indústria cultural local e para as empresas de turismo que vendem imagens da cidade ao Brasil e ao mundo. Se antes as festas de matriz africana eram consideradas uma insubordinação ao poder local, hoje se tornou patrimônio cultural e um dos símbolos de identificação de Salvador, “O registro protege a manifestação na medida em que garante o compromisso de apoio, divulgação e a produção de conhecimento e documentação acerca da manifestação” (TAVARES, 2020, p.01). Salvador se torna cada vez mais uma cidade que pauta suas representações oficiais na memória e cultura de origem africana.

 

2. Onde habita a sereia: Iemanjá nas águas entre o simbólico e imaginário

Salvador é uma cidade privilegiada em sua geografia a beira mar, possuidora de uma beleza sem igual entre o azul do céu e o verde do mar, como já foi descrita por diversos linguagens artísticas, que ao longo do tempo, a conclamou como um verdadeiro paraíso. Desde os registros de viajantes do século XIX, como a literatura de Jorge Amado e passando por versos de Caymmi, Caetano Veloso, Carlinhos Brown entre outros, Salvador sempre foi reverenciada como uma terra de uma vasta beleza natural, com hábitos próprios e possuidora de um povo de fé com rica cultura popular, elementos estes que forjam uma ideia de baianidade.  

A plasticidade visual e sonora faz da cidade uma produtora de discursos e imagens que podem ser observados e vivenciados nas tradições a respeito da Festa de Iemanjá, carregada de ritos e encantos. Este viver baiano é imbuído de expressões codificadas entre o simbólico e o imaginário, entre o individual e o coletivo, numa devoção ao imaterial que pode ser vivenciado através da performance de Iemanjá, sendo de suma importância para os escritos desta pesquisa, uma vez que as percepções captadas transcendem ao plano e compreensão matéria. Segundo Agnes Mariano (2009, p. 24) “a baianidade pode ser entendida como um discurso que tenta solidificar relações, manter um modo de vida, defendendo que a fé- entrega, a confiança (...) em sua tradição é garantia de vantagens”. É justamente pensar a religiosidade do culto à Iemanjá e a fé como uma expressão de baianidade que constitui a ideia de um povo que tem no culto das águas a possibilidade de enfrentamento e superação para os problemas da vida. Essa realidade constitui um imaginário de baianidade que é nutrido pela tradição da fé em Iemanjá.

O imaginário se faz fundamental para a construção das cidades, pensando em Salvador, o espaço do Rio Vermelho é marcado pelo imaginário de que este seja o lugar do culto a Iemanjá, que interfere nas relações dos sujeitos com o espaço físico do bairro. Dessa forma, já que o Rio Vermelho é o local em que ocorrem as manifestações religiosas relacionadas a Iemanjá, o local também será palco para manifestações culturais relacionadas à sereia. 

Sobre os imaginários urbanos Nestor Canclini (1997, p. 92 e 93) destaca que:

 

(...) mucho ocorre con el patrimônio invisible o no tangible según  las des denominaciones que suele usar la Unesco para referirse a él y que há ilevado a crear uma seccion dentro del área de cultura para estudiar este patrimônio invisible. Este patrimônio constituído com levendas, historias, mitos, imagens, pinturas, películas, que hablan de la cidade, há formado um imaginário mulitple que no todos compartimos del mismo modo, del que selecionamos em nuestro grupo,em nuestra própria persona, para armar uma visión que nos deje, poço más tranquilos y ubicados em la cidad. Para estabilizar nuestras experiência urbanas em constante transicion.

                                                    

O imaginário urbano é perpassado por toda a conjuntura do bairro, modificando a estrutura do espaço. Percebe-se isto principalmente pela presença da casa de Iemanjá, que influencia em grafites e artes voltadas à sereia pela grande maioria parte do bairro. As realidades sociais, juntamente com experiências e percepções do espaço permeiam o seio urbano, influenciando em um imaginário, que por ser construído, também pode ser desconstruído.

Neste misto de apologia e quimera, o universo marítimo é uma série de enigmas a serem desvendados por sensibilidades diversas, tendo na arte um aporte diferenciado de possibilidades, numa tela articulada entre materiais e conjunturas para criação artística.

Iemanjá, uma divindade que representa e protege os mares e oceanos, e ainda grande mãe que possibilita fertilidade material e imaterial por meio das tuas águas, tem suas ações certamente codificadas nas primeiras sensações as quais ficam registradas no subconsciente de um inconsciente em formação, em um meio líquido de transmissão.  

Este planeta água, esta primeira moradia, este universo aquático, mar interior, seja talvez uma das representações simbólicas de tantas afinidades e bem-estar da contemplação a imersão, perante a beleza fecunda e infinita que trás o som e a brisa marinha, quando banhados por suas águas.

É necessário trazer para discussão esse conceito de imaginário coletivo, que aqui é citado considerando sua construção através da cultura. A partir deste preâmbulo, o que seria uma representação simbólica do imaginário coletivo? Uma representação é autoexplicativa, desde que represente o possível e passível de se representar enquanto materialidade, visto que o imaterial convive paralelamente em harmonia, sem necessidade do concreto físico. 

O Simbólico conta com a semiótica e seus conceitos, entre signos e símbolos para esclarecimentos da linguagem e do discurso. Sendo assim, percebemos Iemanjá como um símbolo mitológico que habita as profundezas com encantamentos e mistérios a povoar os mares do inconsciente coletivo.

Sobre as formações simbólicas, Silva (2011, p.44) traz elucidativa contribuição:

 

Em outras palavras, como diria outro estudioso da hermenêutica, o símbolo corre “nas expressões de duplo ou múltiplo sentidos”, daí porque o ‘’ o símbolo exige a sua interpretação” (Ricoeur, 1970:15).

Deste modo, é como o mito, possui uma interpretação simbólica, mais que interpretação de palavras: é precisamente no mito que o valor da fórmula Traduttore,Traditore tende  praticamente a zero (L.-Strauss:1958; Durand:61). De tal maneira que o que permeia como significação fenômenos como o mito e a poesia será, mais que a linguagem uma valorização simbólica, que percorre a língua e a transcende, que significa algo além das palavras. .

 

Neste vasto mar entre o simbólico e o imaginário, o cenário da pesquisa em seu desdobramento com a performance de Iemanjá, tem-se através do corpo uma representação simbólica do imaginário. Este imaginário pode ser compreendido como um jogo de espelho que reflete ou é refletido, tendo o artista e o corpo enquanto espaço de interlocuções as quais são dispensáveis encadeamentos narrativos, sendo assim, a expressão corporal transcende. (SILVA, 2011, p.55) diz que “Trata-se da melhor maneira de mostrar a incidência da linguagem e da cultura sobre o corpo, a passagem do corporal ao psíquico, quando o sujeito humano se faz objeto de desejo e entretece a ordem simbólica do imaginário”.

Mediante o exposto, o simbólico e o imaginário, através do que expressam, tem como fonte possível, os campos da psique humana: o inconsciente (SILVA,2011, p. 53). Expõe que: 

 

O “eu”, dizem os psicanalistas, não sabe tudo o que sabe, pois há um saber inconsciente, origem do meu comportamento: “Que o sujeito não seja aquele que sabe o que diz, quando claramente alguma coisa é dita pela palavra que falta (Lacan, 1977:13). Essa palavra que falta, que não vejo ou não conheço, mas que me afeta, faz com que nos situamos diante dos fantasmas do inconsciente.

 

Nestas águas sem calmaria está um elemento que transita livremente, chegando a flutuar sob as ondas com maestria entre os conceitos da representação, do simbólico e do imaginário, sendo este elemento a arte.

Neste misto de fantasia e encantamento, simbólico e imaginário, a figura de uma linda mulher de longas e negras madeixas baila sobre a brisa marinha com rabo cintilante de peixe. A sereia, figura mítica que habita o fundo dos mares e oceanos, sempre exerceu fascínio e mistério entre muitas pessoas e povos, a exemplo dos indígenas que também tem a sua representação de mulher sereia através da sua Iara. 

 

2.1. A performance de Iemanjá

Na composição performática de Iemanjá, o corpo ocupa lugar de destaque, interagindo como sujeito e sendo o objeto da própria arte. A partir desta construção, o artista habilita o imaginário deste corpo e suas construções culturais em enfrentamentos com o espectador.

A utilização do corpo, enquanto mecanismo de expressão artística, trás consigo muitas vezes registros inconscientes e arquetípicos em função das mais distintas utilizações do corpo na cultura, gerando um objeto, um outro corpo, um corpo híbrido, na fusão do corpo enquanto expressão artística, ou seja: sujeito e objeto, arte e obra, artista e composição.

A partir deste hibridismo, o encantamento em representar performaticamente Iemanjá está dentro do contexto do invisível, representar o que não pode ser representado, dizer o que não pode ser dito por palavras. Talvez “a arte nos aponte uma resposta mesmo que ela não saiba, pois é preciso simplicidade para fazê-la florescer” disse Oswaldo Montenegro em sua canção Metade. Diante disso, através da performance, o conjunto de vivências e sensações podem narrar ou escrever o que está nas entre linhas. Através deste ângulo de visão, o imaginário é detentor dos significados, validando a competência do inconsciente nos indivíduos, proporcionando para olhares mais atentos e sensíveis ultrapassar o que enxerga a visão.

Importante destacar a relação entre corpo e cidade, e como a performance se associa a eles por ser uma manifestação artística que, além de se expressar através do corpo, tem a capacidade de mudar a nossa percepção sobre lugares e territórios, onde o sujeito é atravessado pela cidade, e constroem assim as suas subjetividades e conceitos.  

Em Performance, uma introdução crítica, Marvin Carlson, propõe a definição do termo “Performance” tentando compreender “que tipo de atividade humana é essa”. O autor refere-se ainda:

 

Performance é um conceito essencialmente contestado. O caráter controverso do termo, mediante a complexidade do conceito de Performance, permite uma variedade de mapeamentos do conceito, alguns sobrepostos, outros verdadeiramente divergentes. (CARLSON, 2010, p. 11 e 12). 

 

De mais a mais, a performance é um campo bastante instigante e enriquecedor, sua análise e produção conta com diferentes abordagens e reflexões. Este papel normalmente atribuído às artes é apropriado pelo fenômeno artístico da performance, viabilizando a construção de imagens, sentimentos e sensações de “conflitos individuais e consonâncias coletivas”4

Assim, a instauração da performance ocorre através da presença física, onde o corpo é o sujeito e objeto da própria arte, viabilizado pela captação do olhar entre performer e audiência. A compreensão deste processo, levando em conta a relação simultânea de atração entre “o que vemos e o que nos olha” é muito tênue, pois sugere os caminhos de “uma antropologia da forma, uma metapsicologia da imagem” originada no desafio representado pelas formas mais fechadas de um abstracionismo desprovido de traços humanos. (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 19) diz que: “eis onde instaura-se a apreciação estética da obra de arte, numa verdade inacabada, sempre cheia de um devir que ultrapassa o visível, o material”.

E assim, no processo performático onde toda imagem é detentora de expressão e representatividade, é o imaginário que oportuniza a intuição de algo mais, de algo além da matéria, onde a imagem que é refletida é a um só tempo, num piscar de olhos, a fabricação deste imaginário, detentora de uma congruência singular na operacionalização do discurso a que se propõem. O imaginário na performance de Iemanjá pode ser compreendido como a capacidade humana de transcender a este humano, o ser que por hora habita em nós sob a terra.

Assim por intermédio da performance de Iemanjá, o mecanismo da prática como pesquisa além das palavras possibilita a análise do tema proposto sobre a representação simbólica do imaginário coletivo na performance de Iemanjá, utilizando duas ferramentas: o corpo e a poética visual, com o suporte das leituras e sensações que repercute e reverbera apresentando-se de maneira visionária ao performer em processo criativo, sendo viabilizado pela arte e fora no espaço do Rio Vermelho.

Neste seguimento, a imagem de Iemanjá é uma concepção constituída a partir de referências socioculturais e memórias afetivas das religiões de matriz africana entre a Umbanda e o Candomblé, bem como as histórias contadas por avós e as vivências contadas por pescadores que descreve lindamente a sereia, a Iara, a Iemanjá, e todo esse processo perpassa pela experiência visual entre o que vemos e o que nos olha, e vice-versa.  

Em vista disto, a performance de Iemanjá não é uma imagem concreta, é uma fantasia. A imagem que se possui e que reflete deste objeto não o representa, não é o objeto, é apenas um espectro do que se faz visível aos olhos sobre este objeto, no caso a Iemanjá, uma vez que esta imagem é carregada de simbologias e as experimentações individuais e/ou coletivas que reverberam no inconsciente, ocorridas em relação a imagem que se reconhece de Iemanjá.

Necessário se faz neste contexto, observar a natureza das relações socioculturais, a cultura e a tradição onde esta apresentação irá atuar, se fazer presente como símbolo, imagem, alegoria ou metáfora. A representação simbólica do imaginário na performance de Iemanjá contém por sua própria concepção uma multiplicidade de informações, onde o símbolo e o imaginário de Iemanjá não subtraem seu sentido, mas o amplia.

 

3. Eu, obra de arte

Na alvorada de uma manhã de domingo do mês de fevereiro, tem início nosso ritual de personificação em nossa primeira incursão performática de Iemanjá, apresentada na cidade do Salvador no território a beira mar do Rio Vermelho, nesta data palíndromo (02/02/2020). 

A performance aconteceu num cenário fantástico, com o objetivo de ser e sentir-se uma obra de arte, onde o processo performático tem uma fluidez inerente em plenitude de conexões com o território dinâmico, que apresenta uma movimentação de tempo e espaço latente diferenciado em relação a comemoração da Festa de Iemanjá. Houve toda uma preparação artística, contendo figurino, maquiagem, pintura corporal, havendo uma equipe responsável pelo ciclo de criação e confecção deste processo. Houve também uma divulgação da performance por meio de e-mails e redes sociais. Foi feito um trabalho fotográfico com todos que se dispuseram a participar da performance, independente de gênero, sexo, raça, cor, idade, opção sexual, classe social ou religiosa. Todos os que foram chamados pelo trabalho colaboraram de maneira singular.

 As cores das vestimentas e adornos dos orixás na religião de matriz africana tem uma forte representatividade e significados intrínsecos a cada orixá. Assim como as cores, tudo existente na natureza possui campo vibracional e axé (força vital). Neste entendimento, a cor ultrapassa sua condição e torna-se mediadora entre o simbólico, o sonoro e a plasticidade. Em (Peixoto, 2004, p.24) observamos que “A mesma nova e única beleza, enigma inexplicável se não assimilarmos a impressão particular que a cor produz. Aí se dá, pela cor, a criação da alma dos lugares” e dos orixás. Sendo a cor, matriz de possibilidades para a representação visual. Nesta estética de composição, a cor do vestuário e seus adornos, funcionam como arcabouço simbólico para identificação e identidade de determinado orixá. No caso de Iemanjá, as tonalidades, branco, prateado e nuances de azul.

Neste caminho para a construção da performance enquanto obra de arte, o corpo da performer (figura 2), considerado de pele branca inserido em uma tradição afrodescendente talvez cause estranhamento por parte de alguns. Diante disso, este fato na composição do trabalho não agregou ou diminuiu em nada sua realização, na análise da pesquisa e no processo performático. Sabemos que a ideia cristalizada no imaginário popular, cuja representação de Iemanjá se faz a partir de uma mulher de pele branca, perpassa pelo ideal de embranquecimento da cultura de matriz africana vivenciada desde o processo da colonização. Segundo a pesquisadora Helena Theodoro em entrevista para o jornal Folha de São Paulo (2020), argumenta que “Houve uma demonização das religiões negras e indígenas a partir do que a Europa situou como sendo civilizado, humano. Nesse contexto, o humano é europeu, branco de olho azul, dinâmica percebida no sincretismo religioso. A Iemanjá representada na performance do presente trabalho, traz em si uma elaboração simbólica e artística de uma orixá que está no imaginário da maioria da população que cultua orixá, pois como afirma Kiusam Oliveira (2021,p.01) produtora de literatura negro-brasileira em entrevista ao Jornal Brasil de Fato.

 

Iemanjá africana, uma orixá que é símbolo da luta do povo negro. A Iemanjá negra, africana, que a gente reforça somos nós, a gente, nós que somos do Candomblé. E a gente sabe da origem histórica desta rainha. A origem histórica, o local de onde ela vem, jamais ela poderia não ser negra, assim como os orixás.

 

                                                           

Figura 2 – Performance de Iemanjá.

Fonte: Fotógrafa Nana Gadelha,2019.

 

Outro aspecto que temos a refletir é: Como são os corpos que participam da festa de Iemanjá? Qual o significado das vestimentas e indumentárias? Quem compõe a festa? Turistas ou baianos? Mais elite, homens e mulheres brancas? E os corpos negros, estão também participando da festa? De que forma? Nas manifestações do candomblé? Ou muitos somente trabalhando? Neste imenso mar de questionamentos, suscita-se quase que instantaneamente as respostas, pontos de vista e /ou discussões sobre tais questões. A festa ao autorizar uma certa reconfiguração do sistema tradicional vigente, no sentido de uma interrupção espaço temporal onde instaura-se o inusitado, o imprevisto, o passível de todo possível com naturalidade onde a arruaça tende a fluir no desabrochar em todo corpo que contenha uma alma independente de estereótipos ou melhor onde estes são a todos permitidos o direito de desfrutar do viver, da vida e do festejar o dia 2 de fevereiro, festa de Iemanjá.

Enquanto o processo performático estava sendo realizado, foi observado participações diferentes no processo da performance, sendo percebido os que de fato interagiram com a obra de arte, sendo partícipe e coautor do processo performático; os que olhavam e nada viam por vergonha, timidez ou falta de compreensão. Nesta opacidade do olhar, neste “nada ver” segundo a nossa percepção, a obra não chamou a ser vista, não houve sintonia, frequência e por conseguinte diálogo entre a obra de arte e o olhar do andarilho. Até porque naquela multidão “muitos foram chamados, mas pouco foram escolhidos”. Pois as informações e mensagens eram infinitas, porém, muito das mesmas. O inimaginável era a Iemanjá à beira mar do Rio Vermelho em seu dia festivo. A orixá em sua casa (a imensidão do mar) foi até a sala ou área externa (areia) receber e saudar seus filhos. Neste cenário, para haver a conexão entre a obra e o olhar no sentido desta se fazer ver é necessário a sensibilidade do permitir-se a sensações inusitadas e experiências imateriais que necessitam de um gatilho, um piscar de olhos onde o afeto é mola mestra para todas as afinidades e percepções.

E ainda os que de longe contemplavam mas não se aproximavam; e por fim, os que muito registraram o momento com câmera fotográfica e de celular, em divulgação nos meios digitais, difundido a performance.

Outra percepção constatada foi referente às territorialidades no espaço do Rio Vermelho. Estávamos a beira mar, entre mares e desejos de fé, e o que ficou muito nítido é que as pessoas que ali vão ou estão, são as pessoas que em alguma medida são mais devotas e fiéis à Iemanjá, pois à beira mar estão as pessoas que pagam promessas e pessoas ligadas às religiões de matriz africanas. Já no asfalto, onde é feito uma espécie de caminho que leva a Casa de Iemanjá, encontram-se pessoas com maior nível socioeconômico e cultural que observam a festa de longe. Nas ruas atrás da igreja, lugar mais afastado da praia, ficam as pessoas da farra, dança e azaração. Há também os turistas (nacionais e estrangeiros) que transitam em todos e quaisquer territórios, pois já que são de outros lugares acredita-se que não tenham o referencial dos nativos soteropolitanos para compreender o ritual sagrado, tendo mais compreensão sobre a festa profana.

É bem verdade que a cada ano os sujeitos sociais reafirmam o seu enorme afeto pela poética marítima simbolizada na mística que embeleza a paisagem em seu dia 2 de fevereiro, em cumplicidade com as águas do mar. A primeira delas é que a representação entre festa e/ou imagem (escultura/estátua) de Iemanjá ocorrem/aparecem em algumas outras cidades para além do estado da Bahia:

 

Na Bahia, Iemanjá é homenageada no dia 2 de Fevereiro. A maior festa acontece no bairro do Rio Vermelho em frente à colônia de pescadores, mas a Rainha das Águas também é reverenciada em outras regiões litorâneas da Bahia; no Município de Cachoeira em Santiago de Iguape; Praia de Buraquinho em Lauro Freitas; Amoreira em Itaparica; e Ilhéus. (DAMASCENO, 2015 p,16)

 

Além destas cidades baianas, outros estados também faz festa para a rainha do mar como Natal, na Praia do Meio (escultura/estátua); no Rio de Janeiro ocorre a festa de Iemanjá no final de dezembro, além de imagens nas praias de Copacabana e Botafogo; em Belo horizonte na Lagoa da Pampulha; em Petrolina no Rio São Francisco; em Teresina a estátua de Iemanjá está localizada na Avenida Marechal Castelo Branco. Existe também em algumas cidades da América Latina, entre elas, Uruguai – Montevidéu, onde fiéis reúnem-se na praia de Ramirez no bairro Parque Rodó; e em Cuba, onde a festa é realizada no dia 7 de setembro.

 

Segundo Marcos Fleury de Oliveira (2010), a sereia é uma imagem recorrente em muitas culturas. E é surpreendente a quantidade de histórias e lendas sobre sereias no continente americano, vamos encontrá-las em lendas de esquimós no Canadá, México, Brasil, Argentina e Chile, através de Iemanjá no candomblé, e nas lendas amazônicas sobre a figura de Iara. (DAMASCENO, 2015, p. 112)

 

Em Angola, a divindade chama-se Quianda ou Dandalunda protetora dos pescadores e Rainha do mar. Desta forma, a fé e a religiosidade vão além de cor da pele, idioma, materialidade ou fronteira. Observa-se assim que Iemanjá transcende o território do Rio Vermelho em Salvador e está presente em vários outros territórios que cultuam a mãe d'água.

A culminância da performance deu-se com a entrada e saída da Iemanjá do mar (figura 3) com emoção, gratidão e sensação de dever cumprido, com um ritual de purificação pela água deste imenso mar sagrado.

 

Figura 3 – Entrada e saída da Iemanjá no mar.

Fonte: Arquivo da autora.

 

Assim, o processo metafórico instaurado entre a ligação do mar e da arte, faz da comunicação harmoniosa destes dois meios sua essencial força no processo criativo performático. Enfatizando ainda que o mar, este líquido fluido, transparente e misterioso, é um espaço de atuação favorável para trocas diversificadas enquanto elemento constitutivo de vidas e artes.

Percebe-se que a performance é um segundo invisível de natureza fluida, capaz de fazer relações e inter-relações com o tempo, o território e a metamorfose que pode assumir o corpo no momento de instauração do processo performático, em expansão e possibilidades inimagináveis do processo criativo numa cenário ritualístico, heterogêneo, inspirador e alegórico onde está pesquisa e performance tem nascente em um processo metodológico inusitado.

Eu já envolta no processo performático, meu corpo tornou-se texto, nada respondia, apenas era fotografada em movimentos sutis entre e um olhar penetrante e seguro de Iemanjá ao som das ondas, flores, oferendas, grupos religiosos de matriz africana, ambulantes, turistas, curiosos e passantes que contemplavam e que sem se dar conta, também compunham a cena, faziam parte da arte da performance.

Minha relação com Iemanjá tem nascente com a minha chegada a esta existência. E o Rio Vermelho é conhecido por sua morada, assim sendo os bons filhos sempre retornam à casa dos pais, neste caso a casa de minha mãe Iemanjá. Além de ser um bairro afetuoso que bem acolhe toda e qualquer manifestação artística que deseje se materializar neste espaço, sendo assim um museu a céu aberto em relação às obras de arte existem, as que se desejam realizar e a exuberância da natureza entre o azul do céu e as nuances de verde mar sagrado.

 

Figura 4 – Performance de Iemanjá.

Foto: Enaldo Pinto/ Ag Haack / Fonte: G1 globo- BA

 

 

A reflexão proposta é: como arte, através da performance de Iemanjá, marca, o território à beira mar do rio Vermelho? Percebe-se que neste mister, o território possui uma ambiguidade no sentido de ter tradição e ser contado pela história e memórias, bem como um espaço afetivo

Onde o afeto presente no bairro manifesta-se também pela própria figura maternal de Iemanjá que traz em si ser a mãe de todos os orixás, além de está relacionada a fertilidade e reprodução. O afeto é um instrumento modelador e transformador do comportamento humano interferindo em todas as facetas de como percebemos a vida, a arte, o outro e nós mesmos. Onde os corpos se relacionam, se comportam e se conduzem entre sentimentos e sensações imateriais à beria mar do Rio Vermelho no dia 2 de fevereiro. Um fato interessante é que participar, vivenciar esta experiência é de fato um divisor de águas na forma como me relaciono com o bairro, com a festa e com o culto à Iemanjá, pois a performance despertou em mim significativas emoções no dia da festa.

Nesta poética o bairro do Rio Vermelho é apto a receber representações e manifestações artísticas que venham a somar, sendo passível de convivência entre estes dois tempos/momentos, agindo solidariamente.                                     

Esta ambivalência entre o que existe na tradição e o pode vir a ser através da performance de Iemanjá gera um elemento híbrido de simbologias, integrando–se a história num contexto sóciocultural, inserindo-se nas memórias sobre o dia 2 de fevereiro, no território do Rio Vermelho, no tempo e no espaço imaterial da beira mar com a Iemanjá, registrando sua “presença” no território.

 

Considerações finais

O território do Rio Vermelho é palco para diversas manifestações culturais e artísticas.  A arte é um vetor constitutivo de territorialidades onde resiste ao tempo que cria e recria possibilidades. Perante a sociedade, ela escoa por suas fissuras, se reproduz enquanto obra de arte e ressignifica o território urbano e a própria vida. Diante disso, a arte é uma potente forma de comunicação, que expressa sentimentos e emoções que estão para além dos sentidos humanos e nos faz perceber que a cidade e o espaço urbano é por excelência um lugar privilegiado de materialização e realização para arte. 

Considerando a relação entre a cidade e o sujeito viabilizado pela arte que é traçada por lembranças, memórias e pertencimentos, com relação espacial, estrutural e temporal destes corpos no espaço, a presente pesquisa se dispôs a analisar como a arte é manifestada no dia expressivo de Iemanjá, o 2 de fevereiro, à beira mar do Rio Vermelho, na praia da Paciência em Salvador.  

E assim neste oceano, mar, águas de Iemanjá a completude e oscilações do olhar florescem no movimento de que podemos até ver através dos olhos mas as artes e, especialmente. A performance nos arrebata para outros campos de visão os quais sentimos em sensações generalizadas, onde o olhar transcende a imagem que se ver representada e assim em cada entreolhar está a troca enérgica de doar um pouco de si e acolher um pouco da obra, na acepção de troca somos um em múltiplas identidades, completudes e oscilações do olhar.

Neste cenário, a performance e o olhar a um só tempo e dentro de outro time hibridizarm -se: ressignificando a vida sendo “tão bonito quando a vida vai nos caminhos onde bate bem mais forte o coração”. (Caminhos do Coração – Gonzaguinha). “Assim, o sensível da cidade está diretamente relacionado à forma como o corpo humano se relaciona e sente o espaço, o território (Jesus, 2016, p.134). Ainda que em uma festa de Iemanjá. Sendo assim, a arte é o caminho do meio nesta relação entre território e territorialidade, onde ocorre a aproximação entre possibilidades aparentemente distintas e opostas, visto que a arte constitui a matriz de muitas perspectivas. 

Com a performance da imagem representativa de Iemanjá, que é habitada no simbólico e imaginários da cidade interpelado pela cultura e tradição, percebemos as relações entre o sagrado e o profano que se fazem presente e como ele se manifesta na arte à beira mar do Rio Vermelho.

 

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Data de Recebimento: 11/07/2021
Data de Aprovação: 19/11//2021


1  O trabalho “ Arte no território à beira mar do Rio Vermelho: paisagens de Salvador” foi desenvolvido e defendido por mim no Programa de Pós-graduação em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social da Universidade Católica do Salvador em 19 abril de 2021.

2  Em princípio a performance foi pensada como metodologia para a pesquisa de mestrado. Mas o resultado artístico e poético bem como as sensações imateriais superaram as expectativas, nos impulsionaram a desenvolver este trabalho por uma década. Nos anos subsequentes (2020 e 2022) não foi viável o desenvolvimento da performance devido ao isolamento social por conta da covid-19. Em 2022 sendo possível, continuaremos o processo performático na festa.

3  Neste seguimento, a imagem de Iemanjá é uma concepção constituída a partir de referências socioculturais e memórias afetivas das religiões de matriz africana entre a Umbanda e o Candomblé, bem como as histórias contadas por avós e as vivências contadas por pescadores que descreve lindamente a sereia, a Iara, a Iemanjá, e todo esse processo perpassa pela experiência visual entre o que vemos e o que nos olha, e vice-versa

 

4   Termo utilizado pelo Prof. Dr. Ricardo Biriba em sua pedagogia da Performance em aulas teorias e práticas ministradas na Escola de Belas Artes. (EBA), na disciplina Estudos Aprofundados da Performance,2017.