Espaços residuais do Complexo do Alemão (RJ): da estigmatização socioespacial ao potencial de apropriação


resumo resumo

Fernando Espósito Galarce
Vanessa Rodrigues Galvão



Introdução

O Complexo do Alemão, bairro da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, composto por 13 favelas, Adeus, Alemão, Baiana, Casinhas, Esperança, Fazendinha, Joaquim de Queiroz (Grota), Itararé/Alvorada, Mineiros/Matinha, Nova Brasília, Palmeiras, Pedra do Sapo e Reservatório de Ramos, possui, aproximadamente, 69.143 habitantes, em estimativas do IBGE (2010). Nos últimos anos, após os grandes eventos esportivos, a Copa do Mundo (2014) e os Jogos Olímpicos (2016), o Complexo do Alemão tem sofrido um processo de degradação da pouca infraestrutura existente, ocasionado pelo descaso do poder público através da falta de planejamento e investimentos em áreas básicas para a população, como urbanismo, habitação, saúde, educação e segurança.

Para sediar os grandes eventos esportivos, a cidade do Rio de Janeiro passou por grandes obras e transformações urbanas através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Por sua localização estratégica na cidade, a proximidade com vias importantes, como a Av. Brasil, a Linha Amarela e a Linha Vermelha, e aeroportos, o Complexo do Alemão foi alvo de projetos urbanísticos, a partir de 2008, que possibilitaram a implantação do teleférico, que teve como objetivos facilitar a mobilidade dos moradores dentro do Complexo e conectá-los aos outros bairros da cidade através da estação intermodal de Bonsucesso.

No entanto, esses não foram os únicos objetivos. As estações do teleférico ocuparam áreas estratégicas das favelas com a promessa de oferta de serviços básicos, como saúde e educação, marcando a atuação e controle do Estado. Além disso, transformou o Complexo do Alemão em um novo ponto turístico da cidade. Milhares de turistas nacionais e internacionais visitaram o Complexo durante o funcionamento do teleférico (Figura 1), entre julho de 2011 e outubro de 2016, quando teve seu funcionamento interrompido devido à falta de pagamento por parte do Estado. Estas transformações urbanísticas atuaram como coadjuvantes no processo da chamada “pacificação” das favelas, iniciada com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), programa de segurança pública criado em 2008. Com a desativação do teleférico em 2016, as estações deixaram de ter um uso público em termos de mobilidade, sofrendo um deterioro evidente e sendo utilizadas para outros propósitos. Como exemplo, temos as Estações Palmeiras e Itararé ocupadas integralmente pela Polícia Pacificadora e a Estação do Morro do Alemão ocupada parcialmente.

Figura 1. Vista do Complexo do Alemão a partir da cabine do Teleférico.

Fonte: Autoria própria.

 

Durante as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), iniciativa do Governo criada em 2007, no Complexo do Alemão, milhares de moradias foram removidas para facilitar o acesso aos pontos estratégicos das favelas e para a implantação dos pilares do teleférico que sustentam os quase 3,5 km de cabos e suas seis estações. Para o reassentamento da maioria dessas moradias, durante o PAC, foram construídos 5 conjuntos habitacionais, localizados na rua Pedro Avelino, na Av. Itaóca, na Estrada do Itararé e na antiga fábrica Heliogás, além de outros dois conjuntos habitacionais construídos pelo Programa “Minha Casa Minha Vida”. Porém, centenas de famílias ainda esperam pela casa própria e dependem do aluguel social, no valor de R$400,00.

Abandonado desde 2016, o Governo do Estado deu início às obras de recuperação do teleférico do Complexo do Alemão, em março de 2022, de acordo com matéria divulgada pelo G1, que durarão cerca de dois anos para o pleno funcionamento. Em junho de 2022, segundo o Diário do Rio, o Governo anunciou o início das obras de três novos condomínios residenciais através do Programa “Casa da Gente”, totalizando 495 novas moradias para atender uma parcela das famílias que esperam há mais de 10 anos.

Neste cenário, discutir os impactos do teleférico na estrutura socioespacial do Complexo do Alemão se faz necessário. Para tal objetivo, este trabalho mobiliza os conceitos de residualidade e estigmatização socioespacial, observando a alteração do traçado urbano, produto das remoções de moradias para a implantação do teleférico do Complexo do Alemão, e como esses espaços residuais (Figura 2) possuem um potencial de apropriação dos moradores, que ganhou força, num contexto pandêmico e pós-pandêmico, como lugares que podem contribuir para uma cidade mais saudável, especialmente em territórios de elevada vulnerabilidade. Essas áreas residuais possuem potencial para a diminuição da lacuna do descaso do poder público nas favelas, principalmente, durante o período pandêmico, quando a falta de planejamento urbano se tornou mais notória em áreas com pouca oferta de espaços coletivos de qualidade.

 

Figura 2. Espaço residual, próximo ao pilar 20, ocupado por academia ao ar livre.

Fonte: Autoria própria.

 

O trabalho faz uma análise qualitativa e quantitativa sob a ótica da residualidade urbana e socioespacial em alguns dos pontos em que foram instalados os pilares do teleférico do Complexo do Alemão e que sofreram remoções de moradias para tal propósito. A análise é realizada no último dos cinco trechos do sistema, entre as duas últimas estações do traçado, estações Palmeiras e Itararé (Figura 3), trecho que apresenta as maiores modificações e complexidade. A análise é realizada por meio de um estudo comparativo entre o planejamento urbano da favela e bairros de áreas mais nobres, como Tijuca e Copacabana, sob a perspectiva da presença de espaços livres de uso público. Esta comparação permite quantificar e evidenciar as grandes diferenças e desigualdades existentes na oferta de espaços de qualidade entre os contextos urbanos. Além disso, ressalta-se a potencialidade da apropriação dos espaços residuais e a transformação em espaços coletivos que possibilitem a prática de atividades de lazer ao ar livre, além de assegurar seus valores democráticos.

 

Figura 3. Mapa 3D do Complexo do Alemão, com destaque dos espaços residuais (em vermelho) no trecho entre as Estações Palmeiras e Itararé

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Fonte: autoria própria. Dados: Edificações - Instituto Pereira Passos (IPP); Modelo Digital de Elevação - SRTM NASA, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE); espaços residuais - a partir de análises de imagens de satélite do Google Earth.

 

Metodologia

A pesquisa foi desenvolvida por meio de análise cartográfica e bibliográfica, tendo como fontes de consulta e elaboração de materiais o Google Earth, o QGIS, software de geoprocessamento gratuito, matérias jornalísticas e discussão bibliográfica.

A partir de comparações do traçado urbano, entre os anos 2008 e 2022, através de imagens de satélite, é possível visualizar modificações físicas significativas e estimar as áreas dos espaços residuais gerados pela implantação do teleférico do Complexo do Alemão, que possuem um potencial como espaços coletivos nas favelas. Essa análise permite comparar a oferta de espaços livres no Complexo do Alemão com outros bairros, como Tijuca e Copacabana, ressaltando as diferenças entre as áreas mais nobres com áreas periféricas da cidade.

Além disso, fez-se uso de dados do Censo Demográfico do IBGE (2010), a base de dados mais atual e disponível até o momento, para uma análise de densidade demográfica, de renda e do número de pessoas, por gênero, raça e idade, que podem ser beneficiadas com a transformação dos espaços residuais em espaços coletivos de qualidade. Esses dados quantitativos foram analisados e extraídos de planilhas do IBGE, principalmente, das planilhas Básico_RJ e Pessoa03_RJ, e associados ao arquivo georreferenciado, no caso da densidade demográfica e da renda, de setores censitários, também do IBGE, a partir da ferramenta de união do QGIS, conectando os bancos de dados através dos códigos dos setores.

O plug-in Quick OSM se fez necessário para a captação das áreas de lazer dos bairros analisados, Complexo do Alemão, Tijuca e Copacabana, através da chave “leisure”, gerando como resultado uma camada georreferenciada que inclui diversos equipamentos de lazer, como piscinas, jardins, playgrounds, quadras esportivas, pistas de corrida, praças e parques. Para o estudo dos espaços livres, apenas as praças públicas da Tijuca e de Copacabana foram consideradas e, no caso do Complexo do Alemão, a vila olímpica e quadras esportivas também foram consideradas na análise e nos cálculos estimados de áreas.

Ressalta-se aqui a importância do Censo Demográfico e dos softwares de geoprocessamento, voltados às análises espaciais, principalmente em tempos de pandemia, devido à impossibilidade de visitas a campo e as possibilidades de explorar e analisar o território a partir da espacialização de dados.

 

A pandemia no Complexo do Alemão

As favelas são vistas desde o seu surgimento como um problema a ser combatido (VALLADARES, 2016). Desde o século passado, os discursos higienistas recaem sobre as favelas com um caráter assistencialista destas áreas da cidade e com avanços relativos e muito discutíveis em termos de superação das desigualdades socioespaciais. Diante da pandemia, como falar sobre espaços saudáveis nas favelas? A realidade das favelas cariocas destoa das sugestões de combate à pandemia transmitidas por meios de comunicação e das recomendações do poder público em termos sanitários.

Em março de 2020, no Rio de Janeiro, se deu início às medidas de contenção da pandemia, com a paralisação de atividades e serviços, o uso de álcool em gel e máscaras, e o distanciamento social. Em seguida, o lockdown, medida mais radical de isolamento social que permite apenas os serviços essenciais, foi estabelecido como meio de retardar a proliferação da Covid-19 e preservar as vidas. No entanto, é importante observar que os serviços essenciais, em grande parte, são realizados por moradores das favelas, que atravessam a cidade para exercer suas funções, se expondo aos riscos de contaminação pelo coronavírus, tanto nos locais de trabalho quanto no transporte público, podendo transmitir o vírus dentro da própria comunidade.

Optar por não ir ao trabalho, não é uma possibilidade cabível à maioria dos moradores de comunidades que exercem trabalho informal. A falta se segurança econômica, a falta de uma renda básica e um auxílio emergencial com uma estrutura altamente burocrática e demorada, não abre margem para escolha de não sair atrás de recursos para subsistência. De acordo com o mapa de renda (Figura 4), a média da renda dos moradores do Complexo do Alemão varia entre meio e três salários-mínimos. Por isso, ficar em casa não é aplicável a essa parcela da população, pois há a necessidade de suprir carências básicas, como os alimentos e até mesmo o aluguel.

 

Figura 4. Mapa de renda, em salários-mínimos, do Complexo do Alemão.

Fonte: autoria própria.
Dados: IBGE (2010), considerando o valor do salário-mínimo vigente, em 2010, no valor de R$510,00.

 

Apesar de ser um direito garantido pelo Estatuto da Cidade, o “direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer [...]” (BRASIL, 2001, art. 2) está longe de ser a realidade das áreas estigmatizadas, como as favelas cariocas. Ações básicas de combate à Covid-19, como lavar as mãos com frequência, se tornam um obstáculo devido à precariedade do saneamento básico, que se intensificou com a falta d’água recorrente durante o período pandêmico. Os valores elevados do álcool em gel e de máscaras mais eficazes, devido ao aumento da demanda, também impactaram no combate ao vírus nas favelas.

Além disso, as habitações, em geral, devido à forma de ocupação dessas áreas, não possuem iluminação e ventilação naturais adequadas. Possuem um número elevado de moradores, no Complexo do Alemão possui uma média de 3,29 moradores por domicílio, e poucos cômodos, o que inviabiliza o isolamento social e põe em risco a saúde dos outros moradores. No mapa de densidade demográfica (Figura 5), pode ser observada a elevada densidade demográfica nos trechos da Estação do Morro da Baiana à Estação Palmeiras.

De acordo com Sansão e Espósito (2021, p.9), “a cidade, em suas diferentes escalas, é capaz de oferecer possibilidades de interação que além de estimular a convivência e atividades coletivas, também pode oferecer resguardo e espaços seguros e saudáveis”. No caso das favelas e, especificamente, do Complexo do Alemão, a transformação dos espaços residuais em espaços coletivos se apresenta como uma forma viável e necessária para o enfrentamento de pandemias e para a melhoria da qualidade de vida dos moradores, visando a diminuição das lacunas geradas pelo descaso do poder público.


Figura 5. Mapa de densidade demográfica (habitantes / km²), do Complexo do Alemão.

Fonte: autoria própria. Dados: IBGE (2010).

 

Assim, é possível caracterizar a população do Complexo do Alemão que tem sofrido com a negligência do poder público e com a estigmatização socioespacial, e que podem ser beneficiadas a partir da transformação das áreas residuais em áreas coletivas. De acordo com Censo do IBGE (2010), 33.600 pessoas residentes nas favelas do Complexo do Alemão se identificam como pardas, o equivalente a 48,60% da população; 22.993 como brancas, 33,25%; 11.930 como pretas, 17,25%; 583 como amarelas, 0,85%; e apenas 37 se autodeclaram indígenas, 0,05% (Figura 6).

 

 

 

 

Figura 6. Gráfico de pessoas caracterizadas por cor/raça.

Fonte: autoria própria. Dados: IBGE (2010).

 

Esses grupos podem ser subdivididos por faixas etárias (Figura 7): de 0 a 19 anos, 7.928 pessoas são caracterizadas como brancas; 3.267 como pretas; 233 como amarelas; 15.854 como pardas; e 10 como indígenas. De 20 a 29 anos, 4.324 como brancas; 2.455 como pretas; 123 como amarelas; 6.423 como pardas; e 9 como indígenas. De 30 a 39 anos, 3.778 como brancas; 2.192 como pretas; 104 como amarelas; 5.402 como pardas; e 9 como indígenas. De 40 a 49 anos, 2.939 como brancas; 1.675 como pretas; 74 como amarelas; 4.067 como pardas; e 5 como indígenas. De 50 a 59 anos, 1.990 como brancas; 1.166 como pretas; 22 como amarelas; 2.664 como pardas; e 1 como indígena. De 60 a 69 anos, 1.170 como brancas; 744 como pretas; 18 como amarelas; 1.538 como pardas; 2 como indígenas. Com 70 anos ou mais, 864 como brancas; 431 como pretas; 9 como amarelas; 783 como pardas; e 1 como indígena.

Além disso, também é possível identificar os moradores por gênero e faixa etária (Figura 8): de 5 a 19 anos, 9.215 pessoas do sexo masculino e 9.366 pessoas do sexo feminino; de 20 a 29 anos, 6.596 pessoas do sexo masculino e 6.738 pessoas do sexo feminino; de 30 a 39 anos, 5.738 pessoas do sexo masculino e 5.747 pessoas do sexo feminino; de 40 a 49 anos, 4.242 pessoas do sexo masculino e 4.518 pessoas do sexo feminino; de 50 a 59 anos, 2.770 pessoas do sexo masculino e 3.073 pessoas do sexo feminino; de 60 a 69 anos, 1.585 pessoas do sexo masculino e 1.887 pessoas do sexo feminino; com 70 anos ou mais, 819 pessoas do sexo masculino e 1.269 pessoas do sexo feminino.

 

 

 

Figura 7. Gráfico de pessoas caracterizadas por cor/raça e faixa etária.

Fonte: autoria própria. Dados: IBGE (2010).

 

 

Figura 8. Gráfico de pessoas caracterizadas por sexo e faixa etária.

Fonte: própria. Elaborado a partir de dados do Censo Demográfico do IBGE (2010).

 

Estes dados nos permitem afirmar que as pessoas que mais têm sofrido com a crise sanitária e econômica produzida durante e pós-pandemia são, novamente, aqueles grupos historicamente estigmatizados social e espacialmente, nas favelas, em sua maioria, pessoas pretas e pardas de baixa renda.

 

Análise das áreas livres da Tijuca, de Copacabana e do Complexo do Alemão

Os bairros Copacabana e Tijuca pertencentes, respectivamente, às Zonas Sul e Norte da cidade do Rio de Janeiro, reconhecidos como bairros nobres, possuem infraestruturas de espaços livres de lazer semelhantes (Figuras 9 e 10): praças públicas arborizadas, equipamentos de ginástica, brinquedos, mobiliário urbano e espaços para atividades ao ar livre. O bairro de Copacabana dispõe de pelo menos 10 praças públicas, o equivalente a 41.677 m² de áreas livres, e a Tijuca, de 18 praças, aproximadamente, 66.036 m² de áreas livres para os moradores e visitantes.

Ao considerar o número de habitantes do Censo do IBGE (2010), é possível extrair o valor de áreas livres de lazer, aproximadas, por habitante do bairro. Sendo assim, o bairro de Copacabana apresenta 146.392 habitantes e 41.677 m² de áreas livres, ou seja, 0,28 m²/habitante, sem considerar as ofertas de espaços de lazer privados e a orla, tendo em vista que o calçadão é um elemento paisagístico diretamente relacionado ao atributo natural, a praia, para não ocorrer uma distorção do estudo comparativo das áreas planejadas, como as praças. Da mesma maneira, a Tijuca apresenta 163.805 habitantes e 66.036 m² de áreas livres, resultando em 0,40 m²/habitante.

 

Figura 9. Praça Serzedelo Corrêa, em Copacabana.


Fonte: M Chandler, colaborador do Street View, 2016.

 

Figura 10. Praça Saens Peña, na Tijuca.

Fonte: Google Earth, 2022.

 

No entanto, ao realizar a mesma análise sobre o Complexo do Alemão, que apresenta apenas 2 praças públicas, com brinquedos e mobiliário urbano, conformando uma área de 4.808 m² e 69.143 habitantes, se obtém 0,07 m²/habitante, que equivale a 25% da área obtida em Copacabana e 17,5% da área obtida na Tijuca. Ao considerar apenas nesse cálculo as áreas da Vila Olímpica e das quadras esportivas do Complexo, o valor de áreas livres passa a ser 19.947 m², o que equivale a 0,28 m²/habitante, se igualando ao valor da área obtida na análise de Copacabana. No entanto, a qualidade e oferta homogênea de áreas livres, como pode ser observada no mapa de áreas livres (Figura 11), não ocorrem nas favelas do Complexo do Alemão.

 

Figura 11. Mapa de bairros com destaque para o Complexo do Alemão, Tijuca e Copacabana.

Fonte: autoria própria. Dados: IBGE (2010) e IPP.

 

Para diminuir a lacuna de carência e precariedade de espaços livres nas favelas, ocupar os espaços residuais gerados pela implantação do teleférico do Complexo do Alemão (Figura 12), se torna uma potencial alternativa de gerar espaços coletivos que sejam capazes de comportar atividades sociais e de lazer, inclusive no período pandêmico. Ao realizar a mesma análise anterior, considerando o somatório das áreas das duas praças com as áreas residuais, se obtém o valor de 51.525 m² de áreas livres, divididos em pequenas parcelas ao longo do percurso do teleférico, o que equivale a 0,75m²/habitante do Complexo do Alemão.

À luz dos dados, é possível perceber que o espaço residual é um espaço que surge a partir da intervenção de uma ação infraestrutural, neste caso o teleférico. A residualidade pode ser entendida como uma consequência do projeto de infraestrutura, um resíduo espacial entre a infraestrutura e o lugar preexistente. E assim como o espaço se torna residual, também seus habitantes, sendo, mais uma vez, estigmatizados.

 

Figura 12. Mapa do Complexo do Alemão e suas respectivas áreas coletivas de lazer, considerando a Vila Olímpica e as quadras esportivas, e as áreas residuais.

Fonte: autoria própria. Dados: IBGE (2010) e IPP.

 

Nesse sentido, o espaço residual que, dependendo do seu contexto, pode apresentar um potencial de apropriação como espaço público e coletivo, neste caso, tem sua origem em um processo de estigmatização socioespacial resultante da implantação do teleférico. Espaços residuais como estes correm o risco de se transformarem em lugares negligenciados e serem associados à marginalidade, pois, como afirmado por Goffman (1975 apud SIQUEIRA, CARDOSO, 2011, p. 94), o estigma surge na “relação incongruente entre os atributos e os estereótipos”.

Segundo Espósito e Linares (2020), “o estigma se define como algo que não corresponde ao repertório normativo do contexto da situação. É o oposto daquilo, socialmente, considerado como ‘normal’”. Ou seja, nesse contexto, os espaços gerados pelas remoções das moradias para a implantação dos pilares do teleférico, atualmente, encontram-se como lugares subutilizados, sendo, em alguns casos, usados como áreas de descarte de resíduos ou como áreas a serem evitadas por medo de confrontos entre agentes de segurança e o poder paralelo, destoando do que se espera do espaço coletivo, como as praças dos bairros elitizados, Copacabana e Tijuca, comparados anteriormente.

Assim, a apropriação desses espaços residuais, entendidos como áreas com um potencial subutilizado, pode ser definida, de acordo com Lefebvre (1991 apud Velloso, 2016), como o ato de “modificar um espaço cotidiano para que ele possa servir às necessidades e possibilidades de vida de um grupo, entendendo o espaço não como ‘espaço que é neutro, e como tal externo à prática social’”. Portanto, faz-se necessário que a conversão dos espaços residuais em espaços coletivos tenha a participação dos habitantes do seu entorno, que são impactados diretamente, evitando projetos genéricos instituídos de forma hierárquica e descontextualizada.

 

As áreas residuais do trecho entre as Estações Palmeiras e Itararé

Ao considerar o trecho entre as Estações Palmeiras e Itararé (Figura 13), observa-se 7 áreas com potencial de apropriação pelos moradores: a área do entorno da Estação Palmeiras, que engloba os pilares 23 ao 25, parcelas menores nos pilares 18 a 22 e a as áreas do entorno da Estação Itararé, que abrange os pilares 16 e 17.

Figura 13. Mapa de áreas residuais geradas pela implantação do teleférico do Complexo do Alemão, no trecho entre as estações Palmeiras e Itararé.

 

Fonte: autoria própria. Dados: IPP e MPRJ.

 

Nas imagens comparativas da Estação Palmeiras (Figura 14), pode-se observar que, além da implantação da estação do teleférico, também foi implantado um edifício da UPP. As áreas do entorno permanecem sem nenhum tipo de apropriação dos moradores, e muito se deve ao medo de confrontos entre facções criminosas e policiais na região. A área residual de, aproximadamente, 8.075 m², segue ocupada prioritariamente como estacionamento de veículos.

Figura 14. Imagens comparativas da área da Estação Palmeiras

 entre os anos de 2008, 2009, 2016 e 2020

Fonte: Google Earth.

 

Nas imagens comparativas do pilar 22 (Figura 15), a área de remoção das moradias, cerca de 890 m², deu lugar a um talude e uma via de acesso ao pilar, sendo utilizada como estacionamento de veículos. Da mesma maneira, ocorre nos pilares 21 (Figura 16) e 20 (Figura 17), respectivamente, com áreas residuais de 515 m² e 215 m², ocupadas por veículos. Apesar disso, no pilar 20, uma sutil apropriação se faz presente: há um telhado e uma lona estendida sobre um pequeno trecho da área residual, indicado uma ocupação pelo trabalho informal.

 

 

  

 

 

Figura 15. Imagens comparativas da área residual do Pilar 22

entre os anos de 2009, 2012, 2016 e 2020

Fonte: Google Earth.

 

 

Figura 16. Imagens comparativas da área residual do Pilar 2

1 entre os anos de 2009, 2012, 2017 e 2020.

Fonte: Google Earth.

 

 

Figura 17. Imagens comparativas da área residual do Pilar 20

entre os anos de 2009, 2012, 2016 e 2020.

Fonte: Google Earth.

 

No pilar 19 (Figura 18), no nível da rua, há a presença de pequenos telhados, que sugerem uma ocupação pelo trabalho informal. No entanto, no nível inferior do pilar 19 e no pilar 18 (Figura 19), as áreas residuais, respectivamente, 525 m² e 735 m², se transformaram em depósito de lixo dos moradores. Ambos os trechos apresentam a recorrência dessa prática, o que evidencia a precariedade da coleta de lixo nesse trecho do Complexo. Pode ser observada ainda, nos trechos do pilar 17, da Estação Itararé e do pilar 16 (Figura 20), há 2.235 m², aproximadamente, de áreas residuais que, assim como o trecho da Estação Palmeiras, há uma UPP, não apresentando ocupações espontâneas dos moradores, além do estacionamento. 

 

  

 

Figura 18. Imagens comparativas da área residual do Pilar 19

entre os anos de 2009, 2012, 2018 e 2020

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Fonte: Google Earth.

Figura 19. Imagens comparativas da área residual do Pilar 18

entre os anos de 2009, 2010, 2012 e 2020.

Fonte: Google Earth.

 

Figura 20. Imagens comparativas da área da Estação Itararé

 entre os anos de 2008, 2009, 2016 e 2020.

Fonte: Google Earth.

 

Conclusões

Diferentemente do projeto do PAC, os espaços residuais podem ser requalificados a partir da dinâmica específica de cada trecho e de acordo com as necessidades dos moradores imediatos. Dessa maneira, sete novos espaços coletivos, totalizando, aproximadamente, 13.190 m² entre os trechos das Estações Palmeiras e Itararé, podem ser objeto de melhoria deste bairro, inclusive podendo ter contribuído no combate da pandemia.

Ao comparar as áreas públicas de lazer de Copacabana e Tijuca, respectivamente, 41.677 m² e 66.036 m², com as áreas residuais geradas pela remoção de moradias para a implantação do teleférico do Complexo do Alemão, 46.717 m², é possível observar o potencial da transformação dos espaços residuais em espaços coletivos ao longo de todo o trajeto do teleférico, a partir de intervenções em pequena escala. Apesar do traçado urbano complexo, a criação desses espaços residuais deve ser vista pelo poder público como uma oportunidade de construir, com a participação dos moradores, espaços coletivos que comportem atividades de lazer de forma segura e saudável, melhorando a qualidade de vida das pessoas em vulnerabilidade socioespacial. Ações como essas são também formas de atuar positivamente no aproveitamento dos espaços residuais e de combater a estigmatização com a qual se atua nas favelas.

 

Referências

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Data de Recebimento: 23/03/2023
Data de Aprovação: 12/04/2023