Nunca mais será ceifada nenhuma forma de vida pelas águas de um dilúvio; nunca mais haverá dilúvio para destruir a terra
Gn 9, 11
Neste presente artigo, gostaria de trazer à reflexão uma questão que muito tem me interessado: a nossa vulnerabilidade diante de eventos climáticos catastróficos que estão assolando cada vez mais as cidades: as grandes e as pequenas. Das enchentes, às queimadas; das tempestades torrenciais, às secas; o foco de reflexão, nesse tempo do capitalismo, é sempre ligado ao prejuízo financeiro. A questão que quero fazer circular aqui é: e as pessoas e seu mal-estar?
A questão do mal-estar, neste texto, se sustenta em algumas indicações de Freud, a partir de seu texto publicado em 1930, a saber “O mal-estar na civilização”. O nosso foco se dirige para aquilo que é pouco explorado na reflexão freudiana, ou seja, a experiência humana diante do poder supremo das forças da natureza. O bem-estar econômico tem sido posto como pilar de nossa civilização, o que com o capitalismo se reveste de um imperativo de gozo mercantilizado: no mundo, nós somos consumidores. E estamos nos fazendo consumir. Na base do mal-estar, em se pensando o capitalismo, há toda uma configuração sintomática: precariedades, insatisfações, amor (cf. Soler 2016, p. 21). E gostaríamos de acrescentar mais uma: a climática.
A crise climática que vivemos está na base do mal-estar do capitalismo. As catástrofes, que têm dizimado cidades, fazem sofrer. Há uma égide de sofrimento e ela é climática. Assim, como refletir esses processos que tocam a subjetividade, que tocam o laço do sujeito com a cidade? Nessa direção, a minha proposta de reflexão se sustenta em uma análise, que tem como foco uma enchente, no rio Mearim, na cidade Bacabal, no Estado do Maranhão. A ideia deste artigo, surgiu em uma conversa, em um domingo de manhã, em que realizava uma atividade com os moradores da Comunidade Capadócia1, um bairro em processo de urbanização, na cidade de Campinas, São Paulo. O levantamento da equipe do projeto nos mostrou um dado importante: a grande maioria dos moradores da Capadócia são migrantes do Maranhão, vivendo em Campinas. Nas conversas com os moradores algo desta localidade, que se apresentava, era pouca ou quase desconhecida por nós. Tomo este dado como um dos fundamentos desse texto: movimentar-se na rede de constituição dos sentidos do que se diz e do que significa o Maranhão.
No período em que desenvolvia a pesquisa, sou convidado para intervir em um congresso internacional, na Universidade Federal do Maranhão, o CONIL2, em sua sétima edição. De minhas andanças pelo Brasil, essa era a primeira vez que eu me dirigiria ao Maranhão. Assim, ao oferecer maçãs a um grupo de moradores, todos homens, ao final de um café em que construímos uma oficina de arborização com a comunidade Capadócia, um dos senhores, me pergunta: quem são vocês? E respondo: “sou da Unicamp e estou fazendo uma atividade com os moradores da Capadócia. Vamos plantar arvores aqui.” O morador, surpreso, diz que era uma boa ideia, porque no período de chuvas as ruas do bairro, ainda em terra batida, alagam. E isso é de um sofrimento.
Eu lhe perguntei de onde ele era, já que escutava em sua voz um falar regional. E o morador me diz: “eu vim do Maranhão”. E então falo que vou à Bacabal. E este senhor me diz: “eu conheço Bacabal. A cidade começa ao lado do rio Mearim.” Fui, portanto, pesquisar na internet sobre Bacabal. E algo do Maranhão e da cidade de Bacabal se dá a ver: uma enchente devastadora, no ano de 2023. Assim começa este meu exercício de reflexão e análise: com uma imagem da cidade de Bacabal e o mal-estar, que tem suas raízes experimentadas de forma universal e coletiva.
Imagem 1: Bacabal-MA - na enchente de 2023 do rio Mearim
Fonte: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/03/26/chuva-destroi-acesso-a-povoados-no-maranhao-e-atinge-1600-familias-no-para.htm)
Imagem e cidade3
Como lidar com condições climáticas extremas e transformar nossas cidades num melhor lugar para viver? Com esta imagem da enchente da cidade de Bacabal, no ano de 2023, parto do pressuposto de que a imagem funciona como uma espécie de ferramenta que se liga ao processo de produção de conhecimento, particularmente aqui o espaço urbano, que para Orlandi (2001, p. 186) é um “espaço material concreto funcionando como sítio de significação que requer gestos de interpretação particulares. Um espaço simbólico trabalhado na/pela história, um espaço de sujeitos e de significantes”.
Enquanto um espaço simbólico, particularmente atravessado pelas condições de produção de uma enchente, algo da cidade demanda gestos de interpretação, que se ligam aos processos de constituição da vida em sociedade. Como uma cidade se significa em uma imagem? Como uma imagem produz sentidos e interpretação para e na cidade? (Costa, 2012). Com essas duas perguntas, construo o meu gesto de leitura e de interpretação: pensar a os sujeitos e o mal-estar implacável desencadeado pela ação das forças da natureza.
Ao examinarmos esta imagem, da enchente de Bacabal, o que ela diz das pessoas que vivem às margens do rio Mearim? Não reduzo aqui o que se vê ao significante drama humano. Considerando que a cidade se diz, interrogo na imagem os corpos e a localização territorial, já que cidade e território são solidários (Orlandi, 2004, p. 11). Chamo atenção para as ruas de Bacabal. Onde elas estão? Elas desapareceram? A cidade é uma realidade que se impõe com toda força. Há, como salienta Orlandi (idem), determinações que definem um espaço. O que temos entre casas, numa cidade projetada, são ruas. Mas aqui, nesta imagem, o que se tem é uma indistinção entre o rio e a rua. E o que nos dá a ver isto é um objeto simbólico: uma canoa.
Meio transporte e de trabalho nos rios brasileiros e alhures ela, a canoa, é também cantada no carnaval, na Marchinha do Remador (canção famosa de Emilinha Borba, de 1964): “se a canoa não virar/ olê olê olá /eu chego lá”. Chegamos? Onde? Isso, de cantar a canoa, é tão poético! Entretanto, eu tomo a canoa, nesta imagem que analiso, como um lugar fundamentalmente ideológico, o que implica a memória, o interdiscurso, e o efeito de pré-construído.
Enquanto textualidade, portanto do ponto de vista linguístico, canoa se produz como um elemento do já-dito. Em canoa, algo fala e, portanto, como um pré-construído ela está remetida “a uma construção anterior, exterior, em todo caso independente por oposição ao que é ‘construído’ pelo enunciado (Pêcheux, -1983, p. 99).
Orlandi (2004) nos recorda que do ponto de vista discursivo o pré-construído se apresenta como um elemento como se estivesse já lá, “não asseverado pelo sujeito, não submetido à discussão, já esquecido em sua origem e, que, no entanto, funciona no dito” (idem, p. 47). Nesta imagem que aqui recorto, canoa funciona como um elemento do “já visto” e também do “já dito”. Nós, brasileiros, podemos dizer que se anda de canoa nas ruas de Bacabal, no Maranhão. A cidade passa assim a ser observada por meio da linguagem. Linguagem concebida como um observatório dos fenômenos urbanos (idem) e, acrescentaria, climáticos.
O que exploro com essa imagem da canoa na rua é da ordem da significação, da interpretação, pois a
a significação é um movimento, um trabalho na história e as diferentes linguagens com suas diferentes matérias significantes são partes constitutivas dessa história [...] É no conjunto heteróclito das diferentes linguagens que o homem significa. As várias linguagens são uma assim uma necessidade histórica. (Orlandi, 1995, p. 40).
Na imagem que analisamos a canoa é um objeto simbólico que se reveste de múltiplas significações. Ela nos ajuda a compreender todo um processo de adaptação da vida às mudanças climáticas. Canoa, muito mais que uma palavra, é um elemento de paradoxo imagético, no Maranhão, no real da cidade de Bacabal. Como tratar esse mal-estar e angústia, diante dos silêncios, apatias e negação de que o clima no mundo mudou?
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Ressignificando a cidade: a desinformação
Gostaria de propor aqui um outro exercício com esta imagem da enchente de Bacabal que analiso. Isso me dá condições e possibilidades de relacionar a análise das imagens da cidade com a espacialização da linguagem e da simbolização do espaço urbano. No dia 20 de maio de 2024, às 16h49, a Folha de São Paulo publica a seguinte reportagem.
Imagem 2: Print screen da edição on-line do jornal Folha de São Paulo
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/fotos-de-alagamento-no-maranhao-em-post-viral-sao-antigas.shtml
No recorte que aqui apresento, a nossa imagem em análise reaparece, em uma nova cena e condição de produção discursiva: a de fake news. Na perspectiva discursiva, particularmente as que se ligam ao trabalho de Michel Pêcheux, considera-se que a linguagem não é transparente. Nós vivemos tempos difíceis enquanto sociedade da informação. Se o trabalho jornalístico era atravessado por aquilo que Mariani (1998, p. 64) tão bem definiu de “institucionalização social dos sentidos”, hoje com a precarização desse mesmo trabalho, que não nos enganemos já que ela é sistêmica no capitalismo, estamos vendo todo um serviço, que parece um modelo de negócio, com as agências de fact-checking.
Dela-Silva (2021) em um artigo que analisa um importante arquivo sobre a fake news, em jornais de grande circulação no país, chama a atenção para as condições imediatas de circulação dos dizeres e, acrescento por conta e risco, das imagens. Para a autora, temos um funcionamento no fio do discurso, em que efeitos de sentido vão se sobrepondo: notícias, informação, fato.
Carréon (2022) destaca que na fake news há um efeito de verdade sobre um fato ocorrido que, agora, passa a ser falsificado. Na base dessa definição, tanto de Carréon (idem) quanto de Dela-Silva (idem), as autoras salientam que, no campo da análise de discurso, a fake news se dá como um processo de torção discursiva, um conceito desenvolvido por Indursky (2019). Assim, cito Dela-Silva:
Acerca das fake news e de seu funcionamento discursivo, assim afirma Indursky, em entrevista: “À luz da Análise do Discurso, entendo fake news como um processo de torção discursiva realizado sob o efeito de uma identificação ideológica. A torção se dá no momento em que determinado acontecimento é narrado pela mídia de modo a projetar um efeito de verdade ao que, de fato, é uma falsificação do ocorrido. [...] Se a referida torção discursiva for aceita, ela passa a produzir o desejado efeito de verdade. A prática discursiva da falsificação da notícia adquiriu, no fazer político de nossos dias, uma força muito grande, sinalizando que a versão tem muito mais adesão do que o acontecido. (INDURSKY, 2019 apud MARIANI; DELA-SILVA, 2019, p. 29).
Podemos dizer, com estas três autoras, que uma imagem, nessa condição de produção que analisamos, é passível de ser tecida nessas redes de sentido, a de fake news. Não se trata de uma imagem falsa, manipulada, construída com IA (Inteligência Artificial). É uma imagem real que endereça o visível para além de sua transparência. Isso me faz pensar em dois funcionamentos em que a materialidade da imagem é significada: verdade e negacionismo. No primeiro deles, já situado em meus trabalhos (Barbai, 2011 e 2013), diz respeito às imagens produzidas pelos regimes de visualidade dos circuitos de monitoramento (CCTV) e o fato dessas imagens, que capturam as pessoas em contravenção com a lei, serem argumentos verdadeiros e irrefutáveis. Dito de outro modo, os sentidos de uma imagem são uma verdade irrefutável; o segundo ponto, toca em uma questão de nossos tempos: como comunicar ao público as consequências das mudanças climáticas e os imperativos negacionistas da ciência. Há evidências de que a causa das mudanças climáticas são parte da ação humana, mas a conexão da população com efeitos e causas é uma grande problemática, de estudo, de política e subjetividade.
A circulação viral nas redes sociais dessa imagem da enchente em Bacabal, um ano depois de ocorrida, transforma o nosso ângulo de entrada no processo de produção dos sentidos (Dias, 2018, p. 33). Há uma reorganização do trabalho dos sentidos, realizado pelas agências de checagem, como também a voz do Estado dizendo: não há enchente aqui. Funciona neste processo aquilo que Pêcheux (2016, p. 28) diz sobre a produção do acontecimento na voz daquele que tem o direito à fala, capaz de sistematizar o desregramento da coisa dita e identificar “um eco anônimo desenvolvido pelas bordas” (idem).
Enchentes: castigo e tragédia
A Revista Climacom, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), publicou em novembro de 2023 um dossiê científico e cultural dedicado aos desastres. Para o que me interessa, gostaria de fazer uma leitura mais ao pé de letra de um texto específico, ou seja, “O que são eventos extremos? Uma reflexão sobre as diferentes perspectivas do termo” de autoria de Victor Marchezini (et. al.).
Neste texto, os autores destacam que é importante haver um discernimento entre tempo e clima; entre eventos extremos de tempo e eventos extremos de clima, pois isso, para além de uma simples nomenclatura, auxilia no processo e nas ações de gestão de riscos de desastres. É sabido, por muitos de nós, que na atmosfera ocorrem tanto fenômenos usuais, quanto os fenômenos extremos de tempo e clima. Nós falamos aqui das ondas de calor, das ondas de frio, secas e extremos de precipitação. Assim,
Por definição o tempo é a condição instantânea e transitória da atmosfera, como, por exemplo, um dia chuvoso ou um dia ensolarado (Reboita et al., 2012; Lovejoy, 2013). Já o clima representa a síntese espaço-temporal das condições de tempo como, por exemplo, um verão chuvoso e um inverno seco (Reboita et al., 2012; Lovejoy, 2013). (idem, p. 168).
Nós vivemos uma era de desastres e eventos climáticos extremos. Esse processo é fruto de ao menos dois fatores: a) a ruína ambiental, fruto de nossa intervenção no planeta; e, b) a falência de como compreendemos o ambiente. Isso pode ser observado através de um evento climático extremo, ocorrido neste ano de 2024, no Estado do Rio Grande do Sul, que resumo com uma imagem de muita angústia e sofrimento:
Imagem 03: Cavalo preso em enchente no Rio Grande do Sul
https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/10/historia-de-amor-e-sobrevivencia-entenda-a-relacao-do-rs-com-o-cavalo-resgate-em-canoas-emocionou-o-pais.ghtml
Para além de uma ironia, essa imagem é registrada na cidade de Canoas, no Rio Grande do Sul. Essa fotografia, retrata um sofrimento, um mal-estar sem precedentes, ou seja, um cavalo ilhado, em um teto de zinco, à espera de resgate. Em Bacabal, no Maranhão, é possível se andar de canoa na rua; na cidade de Canoas, no Rio Grande do Sul, cavalo transforma teto de zinco em pasto, em ilha. Nessa imagem, não tratamos de uma transformação do cenário, mas da relação dos humanos, animais e plantas, com as águas. Isso pode parecer banal, mas diz de um processo complexo, histórico e linguageiro do homem com a natureza. Isso diz de nossa experiência humana diante do poder da natureza.
Proponho, mais uma vez, um retorno à Bacabal. Desta vez, a partir de um artigo publicado no Encontro de Geógrafos da América Latina, em 2013. Eis o excerto:
No ano de 2009, o município de Bacabal foi castigado4 pelas chuvas por mais de um mês e foi uma das cidades em que as enchentes tiveram um grande impacto no Maranhão (BBC Brasil, 2009). 35.462 mil habitantes de Bacabal foram atingidos de alguma forma pelas cheias (Figura 02). Neste mesmo ano, 4.775 mil ficaram desabrigadas nos municípios e 11.110 mil desalojados (CEDECMA, 2012).
Imagem 04: Avenida Bacabal depois da enchente. Imagens 05: Imagem da Ponte Metálica, Bacabal
Fonte: Google imagens apud Louzeiro; Sabtos; Santos, 2013
A palavra castigo, que destaco no excerto do artigo, figura aqui para além de uma simples escolha lexical, vocabular, na autoria de um artigo. Castigo, em seu próprio processo de definição, organiza os sentidos de punição, de pena que se inflige aos humanos e aos animais. É muito curioso que justamente esta palavra enuncie a ocorrência de chuvas que impactaram fortemente o Estado do Maranhão. Castigo formula, dá corpo aos sentidos dos eventos climáticos extremos. Quem ou o que castiga o mundo que vem atravessando chuvas colossais, nesse nosso tempo? Eis uma palavra comum do discurso jurídico e do discurso religioso dizendo atualizando os sentidos de tempo e de clima.
Neste processo de produção de sentidos de enchente podemos observar como uma imagem faz a memória se contar, pela observação de uma formulação. Isso se faz também com as palavras: tragédia, castigo. Como salienta Orlandi (2017, p. 309) nós estamos diante do funcionamento da memória na narratividade: “ela se “conta” em certas condições, vinculando o sujeito a espaços de interpretação determinados, em suas práticas discursivas, interpelado pela ideologia.
O que dá historicidade para as enchentes, para este mal-estar no corpo dessa cidade, das cidades, é o modo como pelo dizer, pelas imagens, se produz “o enquadramento da significação” (idem, p. 312). Castigo, em sua historicidade, se liga à questão do político e da ideologia. Esse dizer não é apenas uma forma discursiva de um discurso cristalizado de uma época. Ela fala do funcionamento da memória discursiva dizendo o sujeito. Somos uma sociedade aderida à religião e à gramática. Essas são determinações que se cruzam, até no discurso da ciência.
Os trabalhos atuais, dedicados a pesquisar o discurso sobre os eventos climáticos catastróficos, têm apontado um fato muito importante. De um lado, os saberes sobre os desastres, marcado na posição de cientistas, peritos, jornalistas, agentes da defesa civil, gestores públicos, ONGs e as pessoas afetadas em desastres. Um dado importante no estudo de Marchezini et. al. (2023, p. 166) é que:
Pesquisas anteriores analisaram alguns discursos sobre os desastres ao examinarem o processo de culpabilização das vítimas - “também olha onde esse povo vai morar” tem sido um dos juízos de valor evocados (Siena & Valencio, 2005) -, como também da culpabilização das “chuvas” (Valencio et al., 2005) e das “chuvas atípicas.”
A questão da culpabilização das pessoas e das chuvas, sobretudo a partir dessa formulação, recolhida na análise de mais de 260 reportagens jornalísticas, nos diz da força objetificante da ideologia. A culpabilização, um dos operadores do mal-estar nos sujeitos, causadora de sofrimento, é um apelativo de violência.
Considerações Finais
Para concluir, gostaria de inscrever mais uma questão: como tratar a nossa vulnerabilidade diante de um extremo de tempo e de clima, já que nossa dinâmica de urbanização, do ato de projetar cidades, transforma o ambiente expondo uma grande parcela das populações a vulnerabilidades de subsistência, trabalho, infraestrutura e serviços públicos?
Para problematizar esta questão, que atravessa, penso, este texto, gostaria de propor uma ideia, um conceito, em processo de gestação. Trata-se do mal-estar ambiental. Isso porque, após as grandes catástrofes o que temos é a contabilidade dos danos e dos prejuízos. E as pessoas, pergunto? Em linhas gerais, o que me incita a pensar em mal-estar ambiental, é um texto de Freud, escrito em 1929, ou seja, há 95 anos. Freud diz:
O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos. O sofrimento que se origina desta fonte nós experimentamos talvez mais dolorosamente que qualquer outro; tendemos a considerá-lo um acréscimo um tanto supérfluo, ainda que possa ser tão fatidicamente inevitável quanto o sofrimento de outra origem. (Freud, 2010, p. 22, grifo meu).
O poder devastador e implacável das forças da natureza: está é a fonte de sofrimento neste nosso tempo do capitalismo, que tem consumido a Terra. Frente aos eventos extremos, a discussão que a nossa sociedade tem feito (e quando faz) se dá na esfera político-administrativa, científica (quando há financiamento) e tecnológica. E quem sofre? Como se diz? Como se escuta?
O sofrimento, particularmente o que estamos vivenciando em tempos de mudanças climáticas, tem a sua discursividade. Ansiedade, pânico, negação e estresse são hoje causados pelas notícias e acontecimentos referentes às mudanças climáticas. Os que sofrem com elas, ou seja, todos nós, são ainda tratados de acordo com sua territorialidade. Ao nordeste do Brasil, castigo, tragédia. Em outros espaços do globo, inclusive o sul do Brasil, desastre climático. Quem é o sujeito da tragédia e do desastre? Trabalhar na produção discursiva do mal-estar ambiental, pode nos permitir analisar a culpa como elemento da crise ambiental, assim como as relações de força que constroem uma localidade, aquilo que o IBGE5, por exemplo, denomina aglomerados subnormais (favelas e comunidades urbanas).
O sofrimento tem um insuportável do qual queremos nos desembaraçar. Nós buscamos dizer o sofrimento nas causalidades e contingências da vida. No entanto, isso pode nos fazer cair no vitimismo, que tem sido uma metáfora de nossa condição moderna, transformando as demandas da esfera privada e pública em reparação, via judicialização (pelo Direito) ou na esfera individual (Vorsatz e Silva, 2017). Diante da crise climática, que assola a todos, que destino dar ao desamparado?
É importe frisar que o sofrimento não é um desfuncionamento da vida, do mundo. Quando sofremos, qual a nossa parte nisso que se diz e que se sofre? Esta pergunta porta toda uma ética do sujeito para consigo mesmo e com o outro. Queremos o bem-estar. Queremos as soluções universais. Mas essas soluções, em nossa formação social capitalista, em se tratando de clima, não é para todos. Que conexão estabelecer nas cidades com a Terra, as águas, os rios, os oceanos, os animais, as plantas?
Diante das tragédias, dos castigos, que comumente dizem dos eventos extremos de clima que assolam as cidades, a lógica político-administrativa, particularmente frente às enchentes, tem sido a de transferir, a de instalar, para solucionar um problema urbano. Isso é o que nos dá a pensar a reflexão de Lagazzi-Rodrigues e Brito (2001) em um trabalho dedicado aos processos que implicam as ocupações urbanas irregulares. Transfere-se as pessoas que ocupam determinadas áreas na cidade, a instalam em outras áreas sem nenhuma infraestrutura, muitas vezes, “solucionando” administrativamente um problema social: a falta de moradias dignas. Como ressalta Lagazzi-Rodrigues e Brito (2001, p. 59)
Não podemos esquecer que a integração da ocupação na urbanidade da cidade significa a integração da invasão. A legitimação de uma falha na perspectiva regularizadora da nossa sociedade. [...] que circunscreve a urbanidade e localiza o fora e o dentro.
Por fim, com as imagens trabalhadas nesse texto, é possível se dizer que as enchentes, para além de uma questão de evento climático, isso faz parte da lógica de produção capitalista, na medida em que as ações frente a esses acontecimentos de grande sofrimento nas cidades são tomadas na lógica da adaptação, da transformação e da reorganização do espaço. Mas lembro com Pêcheux (2011, p. 115) que “cada ritual ideológico continuamente se depara com as rejeições e atos falhos de todos os tipos, que interrompem a perpetuação das reproduções”. Que tenhamos isso como miríade sem se esquecer que
“Do rio que tudo arrasta
Se diz que é violento
Ninguém diz violentas
Às margens que o comprimem”
Brecht (1973, p. 71)
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Data de Recebimento: 05/10/2024
Data de Aprovação: 22/11/2024
1 Participei como membro da equipe do projeto convergências “Múltiplos olhares para o recurso água e a superação de vulnerabilidades sociais de comunidades frente aos objetivos de desenvolvimento sustentável”, realizado por três núcleos de pesquisa da Unicamp: NIPE (Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético), PAGU (Núcleo de Estudos de Gênero) e NUDECRI (Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade) - Edital Convergências Cocen/Faepex/Unicamp. O projeto se sustentou numa relação entre a universidade e as comunidades periféricas.
2 Agradeço aos professores Magno de Souza Vieira e Luís Henrique Serra, docentes do Curso de Letras e Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal do Maranhão, pelo convite para trabalhar no VII CONIL - https://conilufma.com.br.
3 Gostaria registrar a minha participação no projeto de pesquisa “Imagens da Cidade: Discurso e Produção de Conhecimento” sob a coordenação de Greciely Cristina da Costa, Labeurb/Unicamp, financiado pela FAPESP (Processo 18/26073-8) - ver: Escritos 12 – Labeurb - https://www.labeurb.unicamp.br/site/web/publicacao/verpublicacao?id=4. Neste item, retomo ao pé da letra e atualizo algumas perguntas fundadoras desse projeto, assim como leituras, que abriram de modo muito singular, no campo da Análise de Discurso, na Área de Conhecimento “Saber Urbano e Linguagem, do Labeurb, a intersecção entre imagem e cidade no processo de produção do conhecimento. O meu trabalho no interior deste projeto, permitiu-me avanços nos estudos sobre a materialidade da imagem e os processos de corpsificação, no que tange à subjetividade. Foi uma aposta no entremeio: Análise de Discurso e Psicanálise. Entretanto, neste momento em que vivenciamos de modo capital os impactos da crise climática, no Brasil, com seca, queimada e chuva torrenciais, apesar de todo processo de negacionismo científico, a relação entre imagem e cidade se reveste de uma complexidade ímpar: somos invadidos e assolados pelas imagens e algo aí adoece. Outro ponto a destacar, é o imbricamento entre acontecimento e sintoma (materializado no medo, no perigo, na aflição, no pânico). O acontecimento, aliás, é aquilo que pode marcar uma descontinuidade e fazer aparecer diferentes conjunturas. Os acidentes são diversos e a Análise de discurso não é indiferente a eles. Como o corpo do sujeito está atado ao corpo da cidade (Orlandi, 2004) a crise climática é acontecimento de subjetividade, de língua e de imagem. As imagens que circulam em nossa sociedade, particularmente as que se referem a notícias relativas às violências nas cidades e catástrofes, sempre são acompanhadas de uma legenda que regula aquilo que o imaginário dá a ver. Isso é um efeito do urbano, que ordena sentidos. Mas há o real da cidade que incide sobre os corpos dos sujeitos e isso pode aprisionar, despertar e fazer padecer.
4 Destaco esta palavra no corpo do excerto.
5 Ver: https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/tipologias-do-territorio/15788-favelas-e-comunidades-urbanas.html - Acesso em 15/09/2024.