CORPO-ARTE-CONSTELAÇÃO: das “imperfeições” às reflexões acerca do corpo gordo feminino e seus afetos


CORPO-ARTE-CONSTELAÇÃO:

das “imperfeições” às reflexões acerca do corpo gordo feminino e seus afetos

Martina Viegas [1]

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Meu corpo é meu palimpsesto de afetos[2]. Vou ligando os pontos reais, imaginados, escolhidos e impostos… tenho em frente minha constelação-guia. Não houve a pavimentação do caminho. Não me deram calçados oportunos à íngreme e solitária subida. A ajuda foi, e ainda é, bem escassa. Quando vem, é a conta-gotas. E em cada gotinha pequena dessas, dilui-se meu esforço em “sorte”. Dilui-se choro, suor e sangue em uma grande solução que não soluciona. Desaparece.

O que significa “caminhar” para uma mulher? Uma tia querida sempre repete “Isso mesmo, Martina! Sempre em frente!” e, por mais que eu sinta motivação e coragem na sua fala, às vezes eu canso de caminhar. O “sempre em frente”, é um local? É uma medida de tempo? É sopro de fôlego em meio ao caos? É o próprio caos?

 O corpo que “segue em frente”, seja por teimosia, resiliência ou falta de escolha, ligando uma reflexão à outra, uma concatenação à outra. Surge, deste modo, a minha ideia de Corpo-Constelação – corpo que excede medidas e padrões, ultrapassa convenções. Corpo que “do pó de estrela” do qual dizem que viemos todos, resolveu brilhar em sua organicidade ímpar, dançando com suas lacunas de Eco e seus vazios tão repletos de si, suas textualidades a céu aberto que fazem com que seja diferente de todos os demais corpos.

Traçando riscos coloridos em grafite e em aquarela, reinvento em arte minhas pintas e manchas antes chamadas de “sinais de beleza”[3] e hoje tidas por sinais que precisam ser retirados, “limpos”, cicatrizes e “imperfeições”. Em tempos de apagamento de detalhes corporais que fazem com que sejamos quem somos ou que demonstrem a passagem do tempo em nossas peles – rugas, estrias, pintas, manchas, cabelos brancos, cicatrizes...- trago aos holofotes minhas próprias “imperfeições” corporais e minha produção de subjetividades a partir de quem fui, de quem sou e de quem me tornei.

            Manchinhas no meu antebraço esquerdo, clarinhas e em subtom ao de minha pele branca/rosada; melasma que surgiu nos últimos 3 anos em minha bochecha no lado direito do rosto; pele facial mista, registrada em seu momento mais oleoso (após um dia de trabalho, antes do banho); poros aparentes; mancha na coxa esquerda, composta por 26 manchinhas pequenas, mais escuras: estas são algumas partes de um corpo que transporta e transborda ideias, afetos e afetações; atravessamentos, sonhos e inquietações.

E se eu passar uma fita ao redor de minha cintura, desde que esta fita não seja a métrica? E se esta fita puder ser um bonito e brilhante laço de seda representado em minhas aquarelas cintilantes e metálicas? Cada uma das dobras do tecido epitelial do meu abdômen, tão bonitas, tão minhas, serão salpicadas em pingos e transformadas em poesia presente em meu Eu-Corpo Celeste/Terrestre-Constelação? Eu poderia, então, entender a presença de meu corpo, enquanto um presente envolto em suas dobras e camadas de subjetividades tão íntimas e ao mesmo, tão expostas?

E se eu me encolher bastante, para caber nas expectativas dos outros, haverá espaço para brilhar com minhas “imperfeitas” feições, afetos, afecções e afetações? Ainda haverá o respiro da arte, a promover encontros e desfazer o cansaço que engessa? Há como ser bela, iluminada, em contextos neoliberais de descaso do ser e avanços problemáticos do “parecer”? Parecer mais bela, mais ágil, mais jovem, mais magra? E se o meu formato de corpo gordo encolhido puder ser aproximado da representação de Fibonacci, terei eu as proporções áureas renascentistas?

E se o corpo das mulheres fosse reverenciado como uma obra de arte restaurada enquanto um Corpo-Objeto que se recusa a ser objetificado e que resiste a tantas lutas e julgamentos? E se entendermos as estrias como exemplos irônicos e ao mesmo tempo poéticos de restaurações em ouro da técnica japonesa kintsugi[4]? As estrias, que mostram que o crescimento do corpo não acompanhou a elasticidade da pele, rompendo e trazendo à tona sinais de expansão não contida, seriam resultado do Big Bang corpóreo feminino?

O corpo que não cabe em si: a quem pertence? O corpo que não acaba em si: até onde alcança? O corpo, aquele que transborda para além do que os olhos podem ver, o tato pode tocar, a boca pode sentir, o olfato pode cheirar e a audição ouvir. Este corpo, complexo e completo, onde ele se perde e se encontra? Este, que é “de verão”, mas também de primavera, de outono e de inverno, onde e quando ele passa a se reconhecer e a ser reconhecido?

Para além de todas as miragens do “e se”, e dos reflexos das expectativas e julgamentos alheios, quais são os panoramas de afetos gerados, compartilhados e sentidos? O corpo que consome e é consumido por suas ideias e por ideias outras, por produtos diversos, pelos julgamentos seus e dos outros: este corpo, então, que é plural, não sendo apenas um, mas muitos. Este corpo plural, mesmo quando analisado no singular, que carrega em si todos os afetos e atravessamentos dos tangenciamentos de outros corpos... Meu Corpo-Constelação - que existe e resiste, ao passo que é, também e ao mesmo tempo - o estandarte ambulante de minhas diárias transformações.

 

[1] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (PPGCOM ESPM), bolsista Capes Prosup Taxas; mestra em Processos e Manifestações Culturais e pós-graduada em Design de Superfície (ambas titulações conquistadas na FEEVALE-RS), professora universitária FEBASP – Belas Artes - SP. Email: martina.viegas@gmail.com

 

[2] Conceito que venho trabalhando em minha tese e que articula apagamento e ressignificação.

[3] Nome popular dado às manchas de nascença ou adquiridas por excesso de exposição ao sol, que veio caindo em desuso nos últimos anos. Ainda bastante conhecido e proferido em comunidades mais interioranas de estados brasileiros como o Rio Grande do Sul.

[4] Trata-se da arte japonesa de reparar cerâmicas quebradas com metais como ouro, prata ou platina.




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