Carolina Roberta Peixoto do Nascimento2
ORCID: https://orcid.org/0009-0002-7530-4984
Resumo: O livro Feminismos Favelados: uma experiência no Complexo da Maré, de Andreza Jorge, apresenta as dinâmicas de luta e resistência de mulheres das favelas, a partir da experiência de moradoras do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, sob a perspectiva da intersecção entre raça, gênero e classe. A obra advoga por um feminismo que abarque as experiências de mulheres negras e periféricas, historicamente marginalizadas nos discursos feministas tradicionais. Com base na experiência pessoal da autora e na análise do projeto Mulheres ao Vento — que integra saberes ancestrais, simbolizados pela figura de Iansã/Oiá, com práticas de empoderamento comunitário —, o livro destaca a escrevivência corporal, que ressignifica corpo e memória como territórios de resistência por meio da dança. Buscando legitimar as mulheres faveladas como protagonistas, destacando sua participação ativa e crítica na construção de um feminismo alinhado às diferentes realidades.
Palavras-chave: Ancestralidade; Feminismo favelado; Mulheres; Memória.
Abstract: The book Feminismos Favelados: uma experiência no Complexo da Maré presents the dynamics of struggle and resistance of women from favelas, based on the experiences of residents from the Complexo da Maré in Rio de Janeiro, through the lens of the intersection between race, gender, and class. The work advocates for a feminism that encompasses the experiences of Black and peripheral women, historically marginalized in traditional feminist discourses. Drawing from the author’s personal experience and an analysis of the Mulheres ao Vento project—which integrates ancestral knowledge, symbolized by the figure of Iansã/Oiá, with practices of community empowerment—the book highlights escrevivência corporal (embodied lived experiences) that reframe body and memory as territories of resistance through dance. It seeks to legitimize favela women as protagonists, emphasizing their active and critical participation in shaping feminism aligned with diverse realities.
Keywords: Ancestrality; Favela feminism; Women; Memory.
O livro Feminismos Favelados: uma experiência no Complexo da Maré, de Andreza Jorge (2023), apresenta um estudo sobre a vida das mulheres nas favelas do Rio de Janeiro, a partir de experiências das moradoras do Complexo da Maré. A autora articula uma análise em torno dos temas mulheres, favela, corpo, dança e ancestralidade, abordando as opressões e resistências, coletivas e pessoais. Assim, ajuda a “compreender as subjetividades expressas nas produções artísticas e criativas das mulheres que apontam caminhos de recuperação indenitárias e de memórias racialidas e faveladas” (Jorge, 2023, p. 19-20).
Utilizando epistemologias dos estudos do feminismo negro, decolonial e interseccional, o texto é tecido em conjunto com a vivência da própria autora, destacando sua autoafirmação identitária como um ato contrário ao apagamento histórico e cultural resultante da colonização. Jorge se reconhece como mulher afro-indígena e favelada, nascida e criada no Complexo da Maré, e desde os 15 anos atua em ações sociais na comunidade. Assim, parte de um lugar de pertencimento para analisar dinâmicas sociais, relações de poder e formas de resistência na favela, esse lugar de fala (Ribeiro, 2019) permite-lhe trazer uma perspectiva próxima da realidade de outras mulheres faveladas. Ao compartilhar esse processo de reconhecimento e aceitação de suas raízes afro-brasileiras e indígenas, demonstra como essa conscientização influenciou sua visão de mundo e posicionamento político.
A obra é resultado da dissertação de mestrado da autora e seu objeto é o projeto Mulheres ao Vento, que propõe o empoderamento das mulheres por meio da dança, reconstruindo suas ancestralidades africanas e ameríndias, criando espaços de pertencimento. O projeto é inspirado em Iansã/Oiá – deusa do panteão africano ioruba e divindade em diversas religiões – que simboliza força, resistência e transformação. A autora propõe uma leitura contextualizada dessa figura, adaptando-a às realidades das mulheres faveladas, para isso explora o conceito de oialogia, forjado pela escritora nigeriana Minna Salami, que correlaciona entidades da mitologia africana a questões contemporâneas.
os componentes centrais da oialogia são, como se poderia supor, características-chave de Oiá/lansã (1811-1877). Ela sendo uma força de liderança feminina, seu restabelecimento do equilíbrio na sociedade por todos os meios, até mesmo, se necessário, causando anomia. (Jorge, 2023, p.211).
O projeto Mulheres ao Vento reivindica a importância do corpo enquanto espaço de memória e ancestralidade, compondo uma base para a construção de um feminismo favelado. Para isso, a análise desta experiência é feita sob a ótica do conceito de escrevivência corporal, um termo que se expande a partir da escrevivência cunhado pela escritora brasileira Conceição Evaristo, neste caso inclui as histórias, marcas e lutas que o corpo carrega. No contexto da favela, esse corpo é oprimido de diferentes formas e resiste a pressões sociais, econômicas e raciais, assim a dança, a música e outras formas de expressão artística permitem que as mulheres encontrem novas formas de comunicar suas experiências para além da linguagem verbal.
Feminismos Favelados: uma experiência no Complexo da Maré revela que essas mulheres são protagonistas de suas histórias e que para que o feminismo seja inclusivo ele deve ser capaz de dialogar e aprender com as que estão na linha de frente das lutas sociais nas periferias. As mulheres das favelas transcendem categorizações tradicionais, vivenciando uma intersecção de experiências e opressões que requerem resistências específicas e contextualizadas. No âmbito periférico, o conhecimento nasce da vivência e da história familiar, configurando-se como uma fonte de sabedoria valiosa. Assim, revela uma pluralidade de vivências, saberes e legados de mulheres que vieram antes, que é transmitido entre gerações e que resiste a imposições externas.
a ancestralidade que une caminhos e histórias produzindo atravessamentos ao nos colocar diante de nossa própria história e identidade. E esse sentimento que aguça o desejo de preencher as lacunas que foram criadas pelos apagamentos da colonialidade. (Jorge, 2023, p.32)
Um saber partilhado e fortalecido pela ancestralidade constitui uma filosofia de vida que nos leva a refletir sobre o ciclo contínuo de aprender e ensinar que permeia as filosofias populares. É por meio desse ciclo que as mulheres empoderam-se e nutrem umas às outras, baseando-se em relações de confiança e afeto transmitidas de mãe para filha, de avó para neta. Este conhecimento é compartilhado entre gerações e reafirma as mulheres de favela como guardiãs de um saber capaz de fortalecer o movimento feminista com novas perspectivas e experiências.
Neste contexto, feminismos favelados abarcam as lutas e resistências das mulheres recorrentemente invisibilidades nos discursos mais amplos, e que são frequentemente reduzidas a estatísticas de violência ou pobreza. A principal crítica da autora ao conceito tradicional de feminismo aponta para a incapacidade deste em reconhecer a interseccionalidade das opressões e de conectar suas pautas com a realidade de mulheres faveladas.
Para Jorge, enquanto o feminismo hegemônico se concentra em questões como o direito ao próprio corpo e a autonomia sobre suas escolhas, mulheres faveladas enfrentam desafios mais básicos e urgentes, como a luta pela sobrevivência diante da violência policial, da falta de acesso a serviços básicos e do estigma social. Assim, os feminismos favelados são uma nova configuração, forjados nas particularidades e no cotidiano das favelas. Sendo um movimento que brota da necessidade de agir no presente enquanto se constrói um futuro baseado na memória coletiva e nas lutas que outras mulheres da Maré pavimentaram.
reconheço essas ações como prática feminista favelada, que nada mais é do que a reminiscência de um ideal de vida comunitária carregado de ações de resistência. O ato de cuidar do outro se afasta do lugar de passividade construído na mirada colonial e assume um papel central de manutenção da vida em expansão, da insistência e persistência do viver dessas mulheres e de seus pares. (Jorge, 2023, p.228)
Considerações Finais
Em Feminismos Favelados, Andreza Jorge constrói uma narrativa de resistência e existência, destacando a força do coletivo e propondo um feminismo comprometido com as realidades das mulheres das favelas. Por meio do projeto Mulheres ao Vento, mostra-se que as vivências de mulheres negras, pobres e periféricas constituem uma contribuição indispensável para uma nova configuração de feminismo, enraizado nas particularidades e na cotidianidade das favelas.
A autora parte de sua própria história para construir um feminismo que seja relevante para as mulheres que compartilham marcadores sociais semelhantes aos seus, valorizando suas vivências, suas lutas e suas formas de resistência. O livro também pode ser considerado como um manifesto pelo reconhecimento do saber que nasce nas margens e que, com a força do coletivo e da ancestralidade, passa a ocupar o centro, a partir das vozes que resistem, reexistem e criam novas formas de viver e lutar.
Referências
JORGE, Andreza. Feminismos Favelados uma experiência no complexo da Maré. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. 2023.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.
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Data de Recebimento: 31/07/2023 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES)
2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo – PPGCOM, e-mail: carolina.roberta@acad.espm.br
A ancestralidade para a construção e reconhecimento
Ancestrality for the construction and recognition of a territory of resistance
Data de Aprovação: 25/08/2023