De baixo para cima, de Eliane Costa e Gabriela Agustini



 

 

Maurício Silva[1]

 

http://orcid.org/0000-0002-9609-4579

 

 

O mapeamento de práticas culturais “alternativas”, isto é, concebidas e realizadas fora do circuito cultural mais “tradicional”, além da discussão de conceitos que se vinculam, direta ou indiretamente, a esse universo, são o tema do livro sugestivamente intitulado De baixo para cima, organizado pelas pesquisadoras e agentes culturais Eliane Costa e Gabriela Agustini. Buscando apresentar reflexões e pontos de vista variados no campo dos estudos da cultura, da inovação e da economia criativa, destacando processos criativos, de engajamento e de colaboração e, portanto, invertendo a tradicional relação cultural entre seus agentes (de cima para baixo), ao propor uma relação de baixo para cima, as organizadoras propõem tratar de experiências que têm por base as ideias de compartilhamento e de construção horizontal do saber, não raras vezes dialogando com a noção de cultura periférica.

Assim, em “Tropicalizando a economia criativa: desafios brasileiros, na perspectiva das políticas culturais” Eliane Costa discute a questão da economia criativa no Brasil, relacionando-a aos “desequilíbrios que marcam a cena do financiamento à cultura no país” (p. 26), uma vez que as leis de incentivo que surgem, a partir da década de 1990, como principal política governamental para o setor cultural resultam num quadro em que o recurso público (imposto) é aplicado de acordo com prioridades e escolhas privadas (dos patrocinadores). A autora destaca, ainda, o protagonismo cultural de experiências em geral periféricas que, apesar de nem sempre figurarem no mapa da economia criativa brasileira, afirmam-se como práticas originais e ousadas dentro de nosso universo cultural.

Já em “As periferias roubam a cena cultural carioca”, Jailson de Souza e Silva faz uma reflexão sobre as manifestações culturais nas periferias cariocas nas últimas décadas, as quais se situam no campo das “referências contra-hegemônicas em relação às práticas e representações que contribuem para a reprodução da desigualdade e opressão da diferença” (p. 56). Pensando a cultura sob dois aspectos distintos (um como processo singular, na dimensão do indivíduo e que valoriza a erudição, e outro como experiências relacionadas a práticas comunitárias populares, vinculadas à realidade cotidiana imediata), o autor lembra que esse segundo tipo é, geralmente, associado à ideia desprestigiada de folclore, de amadorismo, desprovido de qualidade e rigor conceitual. Além disso, tal prática cultural revela-se como própria da periferia, entendida como território do outro, construído como espaço inferior a um suposto centro, vista como algo homogêneo e reducionista, marcado por um paradigma da ausência e uma condição de provisoriedade. Por outro lado, trata-se de um espaço marcado também por um discurso de resistência ao centro, que se materializa na crítica de formas culturais dominantes; trata-se de um discurso que se opõe ao discurso central como expressão de identidades estáveis e hierarquizadas. Na verdade, lembra o autor, a periferia consituti-se realidade muito mais complexa, plural e densa do que se imagina, superando a visão estereotipada que dela se costuma ter, já que dotada de novas práticas culturais, pautadas principalmente nos múltiplos coletivos.

Em “a economia híbrida do século XXI”, Ricardo Abramovay trata da economia colaborativa, marcada por uma lógica que “horizontaliza as relações humanas, descentraliza os instrumentos de produção e troca, abre caminhos para laços de cooperação direta entre indivíduos e empresas e contesta o uso indiscriminado dos direitos autorais como base da inovação” (p. 105). Inspirando-se nos movimentos sociais, afastando-se de regimes econômicos concentrados e centralmente planificados, a economia colaborativa incentiva uma espécie de contrarreação às grandes corporações capitalistas (ainda que, atualmente, haja um monopólio das corporações globais ligadas ao mundo digital), interferindo diretamente no mundo dos negócios e da economia e instaurando novos princípios de uma economia digital: “a economia digital contemporânea transforma o que se entende por valor, contesta os parâmetros a partir dos quais a riqueza é medida e dá lugar àquilo que tem sido chamado de forma cada vez mais frequente de economia híbrida” (p. 108). Apoiada na “mistura entre colaboração social e economia privada” (p. 109), a economia híbrida pressupõe um sistema descentralizado, em que prevalece a “colaboração social em rede” (p. 121).

A economia criativa é também tema do artigo “O desafio de uma política de economia criativa aberta e em rede”, de Georgia Haddad Nicolau, que a discute com ênfase nas políticas publicas dos últimos anos, em especial a partir do impacto causado pela criação, no governo Dilma, da Secretaria de Economia Criativa. Reconhecendo que o próprio conceito de economia criativa ainda carece de melhor determinação, a autora lembra que, de qualquer maneira, trata-se de uma ideia que trabalha na intersecção entre cultura, capital e democracia, acreditando, contudo, que ela deva levar em consideração a diversidade cultural, buscando o desenvolvimento social, econômico e cultural: "uma Economia Criativa possível para o Brasil seria aquela que conseguisse promover economicamente as tecnologias sociais e a diversidade cultural e territorial do país" (p. 240).

Há, ainda, outras experiências diretamente relacionadas à ideia de uma prática cultural que se dá de baixo para cima, como aquelas que ocorrem em espaços populares do Rio de Janeiro (seja o espaço de cinema Ponto Cine ou o bloco carnavalesco Escravos da Mauá) ou como atividades que resultam do uso coletivo e colaborativo da internet (como aquelas narradas por Yasmin Thayná e Gabriela Augustini).

Pelas abordagens inovadoras que os artigos apresentam, De baixo para cima é um livro que merece ser conhecido por todos aqueles que compreendem a cultura, mais do que uma atividade vinculada a um modo de pensar homogêneo e hegemônico, uma prática visceralmente ligada à pluralidade e à democracia, no sentido da ideia de cidadania cultural proposta por Marilena Chauí (2008)

 

Referências bibliográficas

Chaui, Marilena. "Cultura e democracia". Crítica y emancipación: Revista latinoamericana de Ciencias Sociales, Buenos Aires, CLACSO, Año 1, No. 1: 53-76, jun. 2008.

COSTA, Eliane e AGUSTINI, Gabriela (orgs.). De baixo para cima. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2014.

 

Data de Recebimento: 02/10/2018
Data de Aprovação: 15/12/2018

 
 

[1] Possui doutorado e pós-doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas pela USP; é professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação, na Universidade Nove de Julho. E-mail: maurisil@gmail.com.