Revista Rua


Um glossário contemporâneo: a língua merece que se lute por ela
A contemporany glossary: the language that deserves to fight for it

Vanise Gomes de Medeiros

 

II. Dicionário e povo           
 
Não podemos falar de dicionários no Brasil sem referir e retomar Nunes em suas já numerosas publicações[4]. É seguindo então suas pegadas que começo. Em um artigo, Nunes (2006a) ao tratar da noção de dicionário popular, promove uma diferença entre dicionário sobre o povo, para o povo e do povo e remete tais tipos de dicionários a três momentos de dicionarização[4] brasileira. Em linhas gerais, o primeiro tipo, dicionário sobre o povo, aparece no final do século XIX: “são dicionários de complemento aos dicionários portugueses: dicionários de regionalismos e brasileiros” (NUNES, 2006a: p.1029). Trata-se de um momento de constituição da língua nacional e essas obras têm por objeto o povo brasileiro. Consoante Nunes, nesses dicionários, cujos autores, especialistas letrados num mundo notadamente rural, discutem acerca da língua nacional, marca-se a diferença entre português brasileiro e português de Portugal. A língua que neles se constrói tem história – filia-se às línguas indígenas – e as definições funcionam estabelecendo uma suposta relação entre as palavras e as coisas. Podemos, com Nunes, dizer que eles mapeiam e nomeiam este outro mundo dando contornos à história da língua nacional. A estes dicionários sobre o povo, que adentram o século XX, seguem-se os dicionários para o povo
 Os dicionários para o povo aparecem nos anos 30-40 do século XX (Nunes, 2006a). Destinados a um grande público “composto de uma classe média urbana, formada pela ascensão da classe trabalhadora e pela ampliação das instituições públicas” (idem: p. 1030), são fundamentais à língua nacional. Diferentemente do dicionário sobre o povo, os dicionários para o povo não promovem mais comparações com a língua portuguesa (já está funcionando a evidência do nacional). Se os dicionários sobre o povo marcam uma divisão entre Portugal e Brasil, os dicionários para o povo inscrevem a diferença interna, de ordem social, que se verifica, por exemplo, pela “retomada dos brasileirismos (marcados nos artigos) [que] reinscreve o discurso popular no dicionário, o que se acentua com a inclusão de gírias e de locuções de uso comum” (ibidem).  Ainda outras observações de Nunes sobre estes dicionários interessam aqui: neles, não comparecem provérbios, frases feitas e textos literários; não há o recurso da etimologia, não há marcas de um passado; não lançam mão tampouco


[4] Sobretudo o livro Dicionários no Brasil: análise e história (2006), estudo seminal sobre dicionário na área da História das ideias Linguísticas.
[5] Nunes compreende dicionarização “como o processo de descrição da língua através do dicionário”. (2006a).