Introdução
Este trabalho busca coordenar aspectos teóricos e conceituais que permitam relacionar “ideologia”, tomando por base a noção de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), e “plataformas digitais de comunicação”, partindo da ideia de capitalismo de plataforma. Tomando como mote que ideologia se constitui materialmente nos chamados AIE, isto é, certas realidades se apresentam ao observador como instituições, Althusser lista que um dos AIE é o de Aparelho de Informação, o que corresponde, à época da escritura do trabalho, à imprensa, ao rádio, à televisão, etc. Somando a isso o caráter provisório da listagem e o desenvolvimento tecnológico, na atualidade as plataformas digitais de comunicação atuam como um desses Aparelhos que se coordenam pela perspectiva ideológica e onde ocorre sua materialização.
As plataformas digitais de comunicação atuam como sistemas tecnológicos automatizados através de algoritmos e são capazes de coletar, armazenar e manipular grandes quantidades de dados fornecidos ou extraídos das interações realizadas por usuários com sistemas computacionais. Esses sistemas têm a capacidade de, em sua estrutura, manter instruções lógicas que apresentam decisões sobre como algo ocorre em um sistema, estabelecendo controle sobre a utilização do próprio sistema, mas também o controle daqueles que o utilizam, jogando com a “fabricação de mundos”, como alerta Bruno (2018). Os grandes expoentes dessas tecnologias são as chamadas mídias sociais, ou redes sociais.
A reflexão sobre plataformas digitais e ideologia deve se deter sobre suas estruturas técnica e política, uma vez que atuam na cooptação e manipulação de dados com intuito de gerar lucro, baseando-se não apenas no negócio financeiro, mas em uma espécie de financeirização da vida, potencializando um modo neoliberal de existência. Como anotam Bruno, Bentes e Faltay (2019), isso se caracteriza pela lógica de uma nova moeda em que informações psíquicas e emocionais são as que mais têm valor para essas empresas, provendo capacidade de controle de comportamento que pode orientar sujeitos para diferentes fins, desde a escolha de um produto até o voto.
Para a consecução da abordagem proposta, a pesquisa bibliográfica se coloca com a principal vantagem da cobertura de fenômenos que podem se encontrar dispersos em variados espaços ou disciplinas, como é o caso desta análise que invade, dentre outros campos, a Filosofia e a Comunicação na tentativa de explicar situações políticas e sociais, traçando caminhos pela literatura selecionada e, com isto, buscando uma compreensão teórica do objeto, não intervindo diretamente na realidade, mas com pretensão de suportar intervenções, privilegiando abordagem que permita compreensão do fenômeno e a sistematização de elementos.
O trabalho está assim estruturado: após esta introdução, é apresentado o aporte teórico e conceitual que subsidia elementos para pensar a proposta do trabalho, subdividido na concepção althusseriana sobre ideologia e nas plataformas digitais de comunicação e seus funcionamentos técnico-políticos. Ao final é realizada uma análise que busca considerar a compatibilidade da compreensão de Althusser sobre ideologia e AIE com o estudo das plataformas digitais de comunicação.
Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: Althusser em cena
Esta seção é responsável por apresentar a categoria “ideologia” em Louis Althusser a partir da obra Aparelhos Ideológicos de Estado (Notas para uma pesquisa). Optou-se por trazer, quase exclusivamente, ideias formuladas pelo autor no referido texto. Em alguma oportunidade, com fins complementares, outras fontes foram buscadas.
Para situar as ideias de Althusser (2022) é importante partir da premissa de que uma sociedade capitalista só pode existir com a perpetuação de determinadas condições de produção. Ao se apoiar no marxismo-leninismo como compreensão da estrutura social, Althusser assume que não existe produção possível sem a garantia da reprodução das condições materiais da produção, isto é, a reprodução dos meios de produção deve reproduzir as condições de produção ao mesmo tempo em que as produz, dependendo de um modo de produção dominante que se utiliza das forças produtivas. Assim, a formação social deve reproduzir as forças produtivas bem como as relações de produção existentes.
O modo de assegurar a reprodução da força de trabalho deve se dar fora da empresa, mas deve ser assegurada pelo salário. Assim, a força de trabalho deve ser diversamente qualificada, ou seja, deve seguir as exigências da divisão sociotécnica do trabalho em seus diferentes “postos” e “empregos”, não bastando estar ligada à estrita condição material, pois está além da qualificação por si só, mas, principalmente, ligada à reprodução da submissão às ordens dominantes que, basicamente, asseguram a dominação ideológica (ALTHUSSER, 2022).
O Estado, nessa concepção, é partícipe essencial na trama, uma vez que estabelece a gestão da exploração, engendrando ideologia como pertencente aos Aparelhos Ideológicos de Estado, isto é, na institucionalização proporcionada por esses aparelhos, mas que não partem, necessariamente, da repressão, mas, sim, de controles de fluxo político que possibilitam a manutenção da ordem dominante. Cabe ao Estado, concebido como aparelho repressivo, estabelecer e manter uma ordem dominante, o que assegura a dominação da classe trabalhadora e permite a exploração desta. Assim é possível entender o Estado como um aparelho de Estado, pois está ligado a um aparelho especializado capaz de reprimir tentativas de revolta da classe dominada. Seguindo esta teoria, o Estado é o aparelho repressor imposto pelo próprio Estado; deve-se notar aqui uma diferenciação entre o poder de Estado e o aparelho de Estado. Como a luta de classes se caracteriza pela tomada do poder de Estado e a dominação dos aparelhos de Estado que detêm e estruturam o poder social, a classe proletária deve se colocar em busca de destruir o Estado burguês (ALTHUSSER, 2022).
Althusser propõe que a teoria de Estado marxista-leninista deve ser ampliada para que possa ser empreendida de maneira consistente, o que faria avançar a própria teoria a partir da compreensão dos Aparelhos Ideológicos de Estado. Estes compõem “[...] certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas” (ALTHUSSER, 2022, p. 74), constituídos basicamente pelos AIE religioso, AIE escolar, AIE familiar, AIE jurídico, AIE político, AIE sindical, AIE de informação e AIE cultural[1].
Aqui cabe um importante alerta feito pelo filósofo: pouco importa se as instituições são consideradas públicas ou privadas; este é apenas um critério estabelecido a partir de uma divisão burguesa organizada pelo AIE jurídico. O que se deve tomar como importante é o seu funcionamento como Aparelho Ideológico, estando ativo por duplo funcionamento, tanto pela violência quanto pela ideologia, cada um ora de maneira primária, ora de maneira secundária. Embora haja dispersão e diversidade dos modos político-sociais, é nos AIE que existe a unificação desses processos, superando possíveis contradições e fornecendo subsídios para que a classe dominada assuma a ideologia dominante. Ou seja, a ideologia existe nos AIE é a ideologia dominante e é nesse espectro que ocorrem as lutas pelo domínio dos AIE, pois “nenhuma classe pode, de forma duradoura, deter o poder de Estado sem exercer ao mesmo tempo sua hegemonia sobre e nos aparelhos ideológicos de Estado.” (ALTHUSSER, 2022, p. 78). Por esse motivo há menção de que uma teoria das ideologias deve se comprometer com a história das formações sociais, a qual é inseparável da análise dos modos de produção e que está ligada ao inconsciente humano. Se o inconsciente é eterno, como designou Freud, a ideologia é eterna e onipresente, ligada à história da formação política e social nas sociedades de classe (ALTHUSSER, 2022).
Ideologia, para Althusser (2022), tem duas concepções, as quais são expressas em duas teses: a primeira diz que “A ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”; a segunda, que “A ideologia tem uma existência material”. Em relação à primeira, defende que os indivíduos representam aquilo que consideram a realidade de suas existências, pois essa representação se dá não aliada às condições reais em si, mas, sim, na relação que estabelecem com um viés imaginativo da sua própria existência. Na segunda tese, Althusser é enfático em admitir que uma ideologia está sempre ligada a um Aparelho, em suas práticas, em seus atos, gerando uma representação ideológica onde o próprio sujeito é obrigado a se reconhecer como sujeito consciente e que suas ideias são livres pensamentos da sua consciência.
A ideologia, dessa maneira, é uma “relação imaginária com as relações reais” (ALTHUSSER, 2022, p. 100), fornecendo um esquema que
[...] a representação ideológica da ideologia é, ela mesma, forçada a reconhecer que todo ‘sujeito’ dotado de uma ‘consciência’ e crendo nas ‘ideias’ que sua ‘consciência’ lhe inspira, aceitando-as livremente, deve ‘agir segundo suas ideias’, imprimindo nos atos de sua prática material e suas próprias ideias enquanto sujeito livre. (Althusser, 2022, p. 101).
Ou seja, práticas são reguladas por rituais centrados nos AIE; por sua existência material, práticas estão inseridas na própria materialidade dos Aparelhos Ideológicos, atuando como provedores de ideias que, supostamente, seriam do próprio sujeito livre. Esse sujeito é, assim, um agente coordenado pelas práticas, pelos rituais e age de maneira consciente segundo sua crença. Isso o coloca na interpretação dos sentidos a partir do gerenciamento do próprio sentido, o que permite à ideologia interpelar os indivíduos enquanto sujeitos, tomando conta de um reconhecimento do sujeito enquanto tal, pois, na própria ação de reconhecimento do sujeito, a ideologia se constrói com base em evidências para si mesmo; este não pode deixar de se reconhecer; o reconhecimento, é importante lembrar, não está ligado ao conhecimento, fazendo com que os sujeitos, embora se reconheçam como tal, não tenham conhecimento do sistema que os leva a tal reconhecimento (ALTHUSSER, 2022).
Essa atuação material da ideologia ocorre por meio daquilo que Althusser (2022, p. 108) nomeou interpelação, recrutadora dos sujeitos entre os indivíduos, assumindo que “A existência da ideologia e a interpelação dos indivíduos enquanto sujeitos são uma única e mesma coisa.”. Enfim, ao assumir esse legado, diz-se, com o pensador francês, que os indivíduos são sempre-já sujeitos, ainda que haja sempre potencial de refino e ampliação do sujeito ideológico. Este está duplamente comprometido, pois mantém uma subjetividade supostamente livre, responsável pelos seus atos e, ao mesmo tempo, subjugado por estruturas que o fazem livremente aceitar a submissão.
Em remate, é significativo evocar novamente que “não é no campo das ideias que as ideologias existem e, portanto, não é aí que se encontra seu interesse teórico. As ideologias têm existência material, e é nessa existência material que devem ser estudadas, não enquanto ideias.” (ALBUQUERQUE, 2022, p. 8). Assumindo esse cenário, nossa intenção se dá no que pode ser considerado um AIE de informação, as plataformas digitais de comunicação e seu funcionamento. Pretende-se aclarar isso na próxima seção.
Plataformas digitais de comunicação e seus funcionamentos técnico-políticos
Esta seção é responsável por apresentar funcionamentos técnico-políticos de plataformas digitais de comunicação. O trabalho aqui está centrado na relação capitalista do objeto, naquilo que foi nomeado como “capitalismo de plataforma”.
Plataformas digitais são estruturas que possibilitam interação entre grupos, como clientes, anunciantes, prestadores de serviços, produtores, fornecedores e até objetos físicos a partir de ferramentas próprias ou criadas por usuários, estabelecendo vantagem competitiva sobre modelos de negócios tradicionais, pois está posicionada entre os usuários e os registros das atividades interativas com o sistema, fazendo com que interações íntimas sejam gravadas com possibilidade de análise dos dados por poderosos códigos que podem inferir gostos, desejos, vontades, etc., bem como designá-los. Dessa forma, plataformas digitais de comunicação se colocam como estratégias ligadas para o lucro e a ruptura da economia tradicional, realizando um deslocamento do consumo de ofertas de bens para a prestação de serviços, podendo ser consideradas elemento importante para o desenvolvimento da comunicação digital (SRNICEK, 2016).
Constituem-se de quatro características principais: em primeiro lugar, não são empresas de internet, mas operadoras de interação digital. A segunda característica é que por controlarem as redes digitais, são as produtoras destas, bem como consomem sua própria produção, necessitando dos dados fornecidos ou extraídos dos usuários que nas redes interagem, atraindo-os para captura de mais dados capazes alimentar bases de dados e algoritmos ainda mais poderosos na predição de resultados. A terceira característica é o “subsídio cruzado”, com uma empresa reduzindo o preço de um serviço ou bem, enquanto outra eleva preços para compensar eventuais perdas, aliciando grande número de usuários para interação frequente, ofertando, por exemplo, um serviço gratuito enquanto lucra com publicidade. A quarta característica é o projeto de interação, isto é, os espaços construídos discursivamente como “espaços vazios” em que a presença dos usuários é o que preenche esse espaço, quando, na verdade, regras, produtos, serviços, etc. são definidos pelas próprias plataformas. Isso pode ser visto em relação a Uber, por exemplo, que ao se apresentar como um recipiente vazio para as forças do mercado, molda a aparência desse mercado, prevendo onde estará a demanda por motoristas para aumentar os preços antes da demanda real, ao mesmo tempo em que pode criar uma frota fantasma para dar ilusão de maior oferta (SRNICEK, 2016).
Além disso, há elementos que coordenam a atuação das plataformas. Algoritmos são responsáveis pelo processamento de informações; protocolos são descritores das interações permitidas dentro da plataforma; classificações são estruturas criadas para gerenciamentos que possibilitam a organização lucrativa da plataforma através de estatísticas e de metadados. Esse conjunto pode induzir, produzir e programar a circulação não só dos dados que são gerenciados dentro da plataforma mas, através da extrapolação das ações, as conjunturas políticas externas, afetando, por exemplo, a economia ou a democracia. A partir desses elementos básicos e não exaustivos, chama-se atenção para os modos de condução da economia e a construção tecno-política desses dispositivos, uma vez que, em muitos discursos, as plataformas aparecem como meros suportes neutros (SRNICEK, 2016).
O próprio Srnicek (2016) fornece pistas sobre essa condução, assumindo que não há mudança na forma como o capitalismo se constitui, mas, sim, no objeto que é aportado, uma vez que os proprietários das plataformas seguem sendo os capitalistas, mas não há necessariamente produção de bens físicos; isso impacta fortemente o produto a ser negociado, como a (a) propaganda, realizada pela coleta, armazenamento e manipulação de informações dos usuários, ofertando produtos que são resultados da análise realizada; como a (b) nuvem, onde proprietários de hardware e de software voltados para negócios digitais alugam essas ferramentas para empresas; e como as (c) empresas enxutas, a exemplo da Uber e do Airbnb, onde a propriedade de bens é reduzida a um mínimo com vistas à oferta do serviço relacionada a esse mesmo bem e o lucro é oriundo da busca incessante pela redução de custos. Isso mostra como o capitalismo de plataforma segue movimentos iniciados na década de 1970, como produção enxuta, cadeias produtivas just-in-time e terceirização. Isso coloca as plataformas como um tipo de “donas” da infraestrutura econômica e, por conseguinte, social, monopolizando setores.
Nesse cenário, afirma Srnicek, as plataformas são complexas estruturas tecno-culturais e socioeconômicas capazes de padronizar a circulação dos elementos em que são especializadas, indo de questões legais ao modo como os trabalhadores se inserem nesse mercado. Ou seja, ainda seguindo propriedades capitalistas, colocam-se na precarização das condições de trabalho, bem como acabam por desenvolver um modelo de negócios seguido não só em ambiente digital, mas também modificando a organização empresarial e a descentralização das atividades humanas como um todo, não sendo possível examinar esse fenômeno como algo isolado das demais relações socioeconômicas mas, sim, tratando-se de uma expressão do capitalismo. A ausência de análise do tema sob esse viés encoberta diversos problemas que advêm dessa forma de promover transações comerciais, como o aumento da desigualdade e a piora das condições de trabalho.
Especificamente em relação aos algoritmos, parte fundamental dessa estrutura, diz-se que são, como observa Silveira (2016, p. 19), “estruturas de agenciamento de dados e de formulação de estratégias para a atração de atenção e modulação de comportamentos [...] fundamentais para o capitalismo informacional”. Em suma, algoritmos são um conjunto de instruções lógicas que, encadeadas, tomam determinadas decisões a partir de componentes lógicos, capazes de especificar o conhecimento utilizado na resolução de problemas, e componentes controladores, definidores de métodos estratégicos para a solução dos problemas (KOWALSKI, 1979). Isso faz com que os processos de armazenamento, de manipulação e de retroalimentação dos dados coletados possam lidar com o ordenamento, a hierarquização e a condução de comportamentos a partir de determinada lógica (STRIPHAS, 2015), uma vez que nessas plataformas o código visto como lei (LESSIG, 2006), sendo responsável pela lógica de caminhos permitidos ou incentivados, podendo limitar, permitir, oferecer, incitar, conduzir, controlar as ações dos sujeitos em relação direta com situações dos acontecimentos políticos, causando, por exemplo, uma remodelagem de “[...] antigos vieses culturais, raciais e étnicos como verdades objetivas e empíricas, agora incorporados a algoritmos, o que resultará em uma discriminação ainda mais acentuada.” (MOROZOV, 2018, p. 179).
Ideologia, Aparelhos Ideológicos de Estado e plataformas digitais de comunicação: algumas considerações
Vislumbra-se, para realizar ensaios de aspectos teóricos e conceituais que permitam relacionar “ideologia”, Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) e “plataformas digitais de comunicação”, um olhar sobre algumas características que podem ser pensadas a partir desses dois dispositivos. Visa-se, assim, a construção não de uma listagem, mas de uma forma discursiva que possibilite a compreensão de potencialidades técnicas e políticas, uma vez que a discussão pormenorizada de cada ponto envolveria um estudo específico para cada tema, arregimentando autores e teorias que extrapolariam tanto o propósito do trabalho quanto sua extensão.
Tanto a questão da ideologia e dos AIE quanto o funcionamento técnico-político das plataformas digitais de comunicação, como apresentadas, não atuam de forma isolada ou em um vácuo político, não podendo ser consideradas de maneira apartada das condições sociais, sem interesses ou fundadas em neutralidade. Pelo contrário, como observam Althusser e Srnicek ao analisarem os dispositivos, ambos agem na criação e na manutenção de laços sociais disseminados. Dessa forma, como abordado, ponto relevante é a necessidade de estabelecer que a análise althusseriana e as plataformas digitais de comunicação, como objetos sociais da realidade, colocam-se no âmbito capitalista e, pensando a condição neoliberal iniciada durante a década de 1970, fornecem conformações que propiciam arregimentar ações para geração de lucros, atuando na compreensão da vida a partir dessa atuação, o que pode ser chamado de financeirização das condições de existência. Podem assim, como dispositivos, estar enquadrados como estruturas de controle e de classificação, estipulando situações de definição social e política.
Isso ocorre porque, como aborda o filósofo francês, a ideologia age na reprodução dos meios de produção que visam reproduzir as condições materiais de existência, algo muito próximo ao que as plataformas digitais de comunicação se propõem através de uma (re)produção da condução social aos moldes capitalistas e neoliberais. Ora, seguindo esse mote, é possível relembrar que Althusser situa a ideologia como uma relação imaginária das relações reais de produção a partir de uma compreensão daquilo que os indivíduos identificam como sendo o “seu real” e que isso se dissemina a partir de Aparelhos Ideológicos, como podem ser consideradas as plataformas digitais de comunicação ao fornecerem, através da atividade digital fomentada pela coleta e armazenamento de dados, o imaginário idealizado a ser seguido pelos usuários, mas que, em verdade, está definindo gostos, desejos, inclinações políticas, etc. e que buscam determinada padronização através dessa reprodução.
Também cabe identificar a importância do controle estabelecido nesses Aparelhos. Para Althusser, com seu texto produzido originalmente no ano de 1970, as conformações capitalistas dos Aparelhos são colocadas pela identificação e pela interpelação, a qual corresponde a um tipo de “pré-identificação” do indivíduo com aquilo que dele é esperado. Assim, como no exemplo em que coloca a respeito do policial que interpela um transeunte e este se vira para atender ao chamado, há a construção, pelo próprio indivíduo, daquilo que a sociedade o imputa, mas, para si, consciente da liberdade. As plataformas digitais de comunicação, situadas em ambiente diferenciado e, como Srnicek menciona, colocadas em uma modificação do capitalismo tradicional e utilizando-se de preceitos neoliberais, a forma de controle está baseada na pretensa liberdade de condução própria, como uma ideologia do esquecimento do controle, onde o sujeito se constitui pelas formas disciplinares mas, ao mesmo tempo, se entende livre para tomar decisões próprias e que os referidos Aparelhos apenas existiriam em sua neutralidade. Como estruturas de comunicação, agem por intermédio de propaganda e toda a atividade de repetição de modos de condução ideológicos operada pela interação com o digital, pelos estímulos que são projetados por essas redes de interação e que são focadas na necessidade de atração dos usuários, fazendo isso com base em um tipo de reconhecimento, de identificação dos sujeitos ali inseridos e que possibilita algo semelhante ao processo de interpelação, onde os sujeitos se posicionam como aquilo que deles é esperado e/ou conduzido.
Plataformas digitais de comunicação, em geral, não são as criadoras da informação, mas os canais de disseminação delas. Ora, essa informação advém de seres humanos, a partir daquilo que criam ou da coleta massiva de dados dos movimentos na rede. As plataformas abrigam algoritmos capazes de mapear situações em que essas informações são mais úteis para disseminação, independentemente se condizem ou não com fatos. Esses dispositivos, a partir dos algoritmos, enviam informações seletivas para determinados grupos, criando laços entre o receptor e a informação; laços esses que podem estar baseados em afetos por aquilo que está sendo apresentado como informações ou ainda na criação de processos imaginários em que o próprio sujeito se identifica. Isto é, essa forma de comunicação atinge populações de maneiras quase imperceptíveis, sendo capazes de construir subjetividades, identificações e incitar ações variadas. Dessa forma, a construção algorítmica é capaz de conduzir discursos e ideologias.
Pensamos que esse olhar seja uma crítica importante para empreender que as plataformas digitais de comunicação, como Aparelhos Ideológicos de Estado, especificamente um Aparelho de Informação, estão longe de uma propalada neutralidade, pois atuam a partir de conhecimento autorizado por modelos estatísticos complexos construídos com base em coleta, armazenamento e manipulação de dados que são extraídos dos próprios usuários e permite criar perfis padronizados de populações, como afinidades políticas, por exemplo, possibilitando redefinir o ambiente social através de seu centro motor – os algoritmos – capazes de organizar elementos que podem vir a ser a prática dos sujeitos na sociedade, interferindo diretamente em sistemas democráticos, por exemplo. Nesse sentido, o que está em jogo é um delegar das propriedades de construção ao âmbito das plataformas, o que sujeita a própria construção social à lógica estabelecida por esse tipo de Aparelho Ideológico e que conforma no sujeito uma relação imaginária com sua própria existência.
Pode-se considerar como pano de fundo a questão da luta de classes. Para Althusser, situado no bojo do enfrentamento marxista, essa se coloca como causa primeira. Nesse sentido, a existência do Estado e a luta pela hegemonia dos Aparelhos Ideológicos são características que comprovam essa luta. Apenas a tomada dos Aparelhos e a consequente dissolução do Estado pelo proletariado seria capaz de mudar as condições de existência e subverter o entendimento atual do Estado burguês. As plataformas digitais de comunicação se espelham nesse processo pois são empreendidas por grandes empresas controladoras da pretensa liberdade do sujeito, enquanto disseminam seus modos de existência preferenciais e ativam constantemente o sujeito para a (re)produção contínua que alimenta o próprio capital.
Compreende-se que existem possibilidades de compreender as plataformas digitais de comunicação pelo aporte apresentado por Althusser e sua composição de ideologia como materializada nos Aparelhos Ideológicos de Estado, uma vez que o trabalho empreendido pelo filósofo é condizente com a estrutura dessas plataformas e o modo que elas se situam no mundo, principalmente pelo viés capitalista e suas composições que discursam sobre um pretenso “espaço vazio”, neutro, mas que, em realidade têm demandas claras daqueles que podem ser considerados dominantes na ordem do capital, com a busca de padronização de demandas, estabelecimentos de gostos, vontades, além de fomentar modelos de negócio ligado ao modo neoliberal de vida.
Referências
ALBUQUERQUE, J. A. G. Introdução crítica: Althusser, a ideologia e as instituições. In: ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2022.
ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado (Notas para uma pesquisa). In: ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2022.
BRUNO, Fernanda. A economia psíquica dos algoritmos: quando o laboratório é o
mundo. NEXO Jornal, p. 1-3, 12 jun. 2018.
BRUNO, F. G.; BENTES, A. C. F.; FALTAY, P. Economia psíquica dos algoritmos e laboratório de plataforma: mercado, ciência e modulação do comportamento. Revista FAMECOS, v. 26, n. 3, set./dez. 2019.
KOWALSKI, R. Algorithm = logic + control. Communications of the ACM, v. 22, n. 7, p. 424–436, 1979.
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STRIPHAS, T. Algorithmic culture. European Journal of Cultural Studies, v. 18, n. 4-5, p. 395-412, 2015.
Data de Recebimento: 24/10/2023
Data de Aprovação: 11/11/2023
[1]Althusser ressalta que a lista é empírica e pode ser retificada após análise contextual.