O espaço urbano, o grafite e a identidade do sujeito catador


resumo resumo

Luciana Fracasse Stefaniu
Luciana C. Ferreira Dias Di Raimo



Introdução

Acreditamos que cidade é um espaço (e não somente espaço físico, mas espaço linguístico) sobrecarregado de sentidos. De uma perspectiva discursiva, tomamos como base a especificidade da cidade de São Paulo, buscando compreender os processos de formulação e circulação de carroças de catadores (re)significadas pelo trabalho do grafiteiro Tiago Mundano, em seus trajetos de sentidos pelo/no espaço urbano.

Voltaremos nosso olhar para imagens de carroças de catadores que foram “pimpadas” pelo projeto “Pimp my carroça” idealizado pelo grafiteiro Tiago Mundano. Esse projeto artístico tem o objetivo de customizar carroças de catadores de lixo e materiais recicláveis em São Paulo tanto em termos de arte (pela espacialização de pintura, desenhos e enunciados de “efeito”) quanto em termos de segurança, na medida em que as carroças recebem retrovisor, buzina e faixas refletoras. Assim sendo, voltaremos nosso olhar para a produção de efeitos de sentidos nas/pelas carroças que tanto textualizam a arte do grafiteiro Mundano quanto deslocam sentidos ligados à identidade do catador e às formas de preconceito da população com esse tipo de atividade.

Segundo Orlandi (1999, p.9), a Análise do Discurso nos permite “problematizar as maneiras de ler, levar o sujeito falante ou o leitor a se colocarem questões sobre o que produzem e o que ouvem nas diferentes manifestações da linguagem”. Ressaltamos que, entre as diferentes perspectivas voltadas aos estudos linguagem, a Análise do Discurso (AD) é concebida numa perspectiva discursiva materialista, centrando seus estudos nas condições de produção do discurso, nas quais compreendemos um sujeito-autor que pensa o que pode ser pensado, justamente porque está inserido num conjunto de possibilidades. Em sintonia com Pêcheux (1990), entendemos que a tarefa da análise do discurso é a de expor a opacidade do texto ao olhar do leitor.

Entre os vários conceitos mobilizados pela AD, neste artigo, em específico, enfocaremos os processos de produção do discurso, citados por Orlandi (2005), os quais envolvem três momentos inter-relacionados: a constituição, a formulação e a circulação do dizer, buscando compreender como a carroça se textualiza em meio à imbricação verbal e visual e produz efeitos de sentidos diversos na/pela circulação no espaço da cidade.

 

 

Contribuições da Análise do Discurso (AD)

Ao conceber o homem em sua história, a AD se volta para o contexto em que a linguagem é produzida, considerando que esta não é transparente. Dessa forma, o analista do discurso não almeja simplesmente saber o que texto quer dizer, mas sim entender como esse texto significa.

Com isso, podemos dizer que o sujeito da Análise do discurso é duplamente afetado: de um lado, considerando-se seu funcionamento psíquico, o sujeito é falado pelo inconsciente, parte que ele desconhece; de outro, considerando-se seu funcionamento social, o sujeito é afetado pela ideologia, já que não há discurso sem sujeito, nem sujeito, sem ideologia. Nos termos de Pêcheux (1988, p. 133-134) “o recalque inconsciente e o assujeitamento ideológico estão materialmente ligados, sem estar confundidos, no interior do que se poderia designar como o processo do significante na interpelação e na identificação”.

De fato, o sentido de um texto não existe em si, sendo, pois, definido pelas posições ideológicas dispostas no processo sócio-histórico no qual as palavras são produzidas. Seguindo o mesmo raciocínio teórico, lembramos que em todo texto devemos considerar aquilo que é dito naquele momento, o que já foi dito e esquecido e também aquilo que não foi dito, mas faz sentido.

Nessa perspectiva, Orlandi (2005) enfoca os três momentos que contemplam os processos de produção do discurso. A autora ressalta que estes momentos são igualmente relevantes:

 

1) Constituição: a partir da memória do dizer, fazendo intervir o
contexto histórico-ideológico mais amplo;

 

2) Formulação: em condições de produção e circunstâncias específicas;

3) Circulação: ocorre em certa conjuntura e segundo certas condições

 

O momento da constituição corresponde ao interdiscurso e é representado como um eixo vertical composto por todos os dizeres já ditos e esquecidos. A constituição determina a formulação, visto que só é possível formular se nos projetamos na perspectiva dizível. Assim, “todo dizer se encontra na confluência de dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação), e é desse jogo que tiram seus sentidos” (ORLANDI, 1999, p.33).

Já a formulação, corresponde à vida da linguagem, pois conforme Orlandi (2005, p.9), “formular é dar corpo aos sentidos”, na medida em que o homem, um ser simbólico, constitui-se em sujeito pela e na linguagem inscrito na história para significar, possui seu corpo vinculado ao corpo dos sentidos. Nesse contexto, há um investimento do corpo do sujeito atado ao corpo das palavras, indicando que a formulação compreende:

   

O momento em que o sujeito diz o que diz. Em que se assume autor. Representa-se na origem do que diz com sua responsabilidade, suas necessidades. Seus sentimentos, seus desígnios, suas expectativas, sua determinação. Pois, não esqueçamos, o sujeito é determinado pela exterioridade, mas, na forma-sujeito histórica[1] que é a do capitalismo, ele se constitui por esta ambiguidade de, ao mesmo tempo, determinar o que diz. A formulação é o lugar em que esta contradição se realiza. Ela é o acontecimento discursivo pelo qual o sujeito articula manifestamente seu dizer. Dá o contorno material ao dizer instaurando o texto. (ORLANDI, 2005, p.10)

  

Assim sendo, a formulação atualiza a memória discursiva e ocorre materialmente ao colocar o discurso em texto, pela textualização[2]. Em outras palavras, a autora afirma que o interdiscurso (dimensão vertical, constituição) delimita o intradiscurso (dimensão horizontal, formulação) e todo dizer se constitui ao ser atravessado pelo interdiscurso (memória).

Sob o ponto de vista da Análise do discurso, é preciso referir um discurso “ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção” (PÊCHEUX, 1990, p. 79). Neste caso, segundo Pêcheux (1990, p. 82) “os elementos A e B designam algo diferente da presença física de organismos humanos individuais. Se o que dissemos antes faz sentido, resulta pois dele que A e B designam lugares determinados na estrutura de uma formação social”

Se este lugar social é tido como feixe de traços objetivos, funcionando como tal no interior do processo discursivo, é preciso entender que este lugar (do grafiteiro) no caso do presente trabalho se encontra aí representado, isto é, presente, mas transformado. Nas palavras de Pêcheux (1990, p. 82):

   

o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. Se assim ocorre, existem nos mecanismos de qualquer formação social regras de projeção, que estabelecem as relações entre as situações (objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas situações).

 

  

A circulação, ou trajetos dos dizeres, corresponde aos meios e maneiras pelos quais os sentidos se formulam e como circulam (escritos em uma faixa, sussurrados como boato, documento, carta, música etc) (ORLANDI, 2005, p. 12). Para a autora, não há privilégio entre as instâncias da constituição, formulação e circulação, portanto, a ordem de apresentação dessas instâncias só se faz por necessidade teórica ou por questões metodológicas.

 

 

Análise de imagens das carroças pintadas por Mundano circulando no espaço da cidade de São Paulo

Compreender a textualização e movimento de carroças que se constituem a partir de um trabalho artístico e de customização no espaço urbano de São Paulo nos leva a um exame das condições de produção desses trajetos de sentidos.

Neste caso, é preciso contemplar, na análise, o projeto implementado pelo artista Mundano, o projeto "Pimp My Carroça", que, está em uma relação de paráfrase com o programa televisivo da MTV Pimp my ride, em que carros tidos como latas-velhas são reformados e repaginados. Mas no caso do projeto de Mundano, as carroças não são somente reformadas do ponto de vista estrutural (pintura e inclusão de recursos-buzinas, placas), há que se pensar no deslocamento de sentidos ligados aos catadores tidos como invisíveis pelo olhar do outro morador da cidade ou vistos, pelas ruas, em condições precárias de segurança. O projeto não só dá visibilidade ao catador pela arte que esse transporta, oferecendo-lhe, em termos de transporte, outras condições-de segurança, de autoconfiança, como também a carroça é suporte da arte, da crítica, ou seja, o catador é aquele que permite uma exposição da arte e da crítica ao ar livre.

Nos termos de Guimarães (2002, p. 9), “a designação é o que se poderia chamar de significação de um nome, mas não enquanto algo abstrato. Seria a significação enquanto algo próprio das relações de linguagem, enquanto uma relação linguística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história”. Neste sentido, o projeto Pimp my carroça nos coloca diante de uma designação para a carroça conduzida pelo catador e para ele próprio: ao colorir e equipar o veículo, em uma relação de transferência, a visibilidade produzida graças à reformulação da carroça é deslocada para o sujeito catador - sujeito que (também) demanda significação por ser, nessas novas condições de produção, visto pelos outros moradores. Além disso, o gesto de imprimir/textualizar, em meio ao grafite, frases críticas e questionadoras permite a emergência de um novo lugar para o catador e para a coleta do lixo: o de fazer circular novas relações de sentidos na/pela cidade.

Neste caso, é válido refletir sobre a relação entre a constituição, a formulação e a circulação dos sentidos, a partir da imagem das carroças, tomadas como materialidades linguístico-históricas:

 

1) constituição dos sentidos- o trabalho da memória do dizer (interdiscurso)

2) à sua formulação- textualização do anúncio (intradiscurso);

3) à sua circulação- processo que os sentidos se dão em uma certa conjuntura, assentados em um dado suporte.

 

Ao abordamos a memória do dizer, reconhecemos que, enquanto memória discursiva, ou interdiscurso, esta abrange o esquecido e o lembrado, já que para dizer temos que deixar de dizer. O interdiscurso é “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que sustenta cada tomada de palavra” (ORLANDI, 2005).

No corpus em análise, os sentidos produzidos nas/pelas carroças não rompem com a memória discursiva, justamente por isso as relações de sentido produzidas na textualização são formulações possíveis frente às condições de produção, não estando definidas independentemente dessas condições. Ou seja, tudo que foi textualizado nas carroças sobre a reciclagem, sobre o lixo e sobre a própria carroça tem relação com as condições de produção e com a memória. Assim, indagamos: de que maneira podemos compreender as condições pelas quais determinada interpretação se faz possível e natural?

A partir desses questionamentos, nos reportamos à formulação de imagens de carroças, ou seja, ao espaço do texto, no qual o recorte do social se faz presente.

Na condição de leitores, o que temos num primeiro momento? Temos a textualização a partir da qual um sujeito-enunciador dá corpo a uma memória que produz o novo, em meio à emergência de carroças repaginadas: reciclar a carroça é reciclar a identidade do catador e da própria cidade.

Tomando como base o contexto sócio-histórico mais amplo, uma vez que o discurso é a relação entre a língua e a história, consideremos a carroça (textualidade) na imbricação entre o verbal e o visual, compreendendo o trabalho dos sentidos no texto.

Nesse ponto, nos indagamos: como o processo de textualização é compreendido pela Análise de Discurso a partir deste texto? Para a perspectiva discursiva, o texto deve ser pensado em sua materialidade (marcas, vestígios) e como objeto simbólico que se constitui em uma relação com a memória do dizer. Neste caso, há que se considerar a carroça como textualização verbal e não verbal de uma memória relacionada à reciclagem e ao trabalho dos catadores no espaço urbano.

 

Imagem 1

Fonte: http://www.flickr.com/photos/artetude/3062903885/in/set-72157600532498856

 

A primeira carroça exposta na imagem é constituída por um texto verbal e um texto não verbal, o que nos leva a pensar na incompletude de uma materialidade na relação com outra (LAGAZZI, 2008). De um lado, a imagem nos reporta a um desenho em que um rosto com traços exagerados aparece em primeiro plano. Tal imagem de um rosto desenhado na carroça materializa uma expressão humana caracterizada por traços fortes e marcada por um tom sério e questionador (lábios selados, desenhados em posição invertida, olhos caídos, narinas dilatadas). Já o texto verbal “Recicle seus conceitos” produz efeitos de incentivar a crítica no outro-morador que tem preconceito à prática dos catadores.

Também, outro aspecto da materialidade não verbal diz respeito ao fato de o veículo, a carroça, ter sido pintado na cor vermelha, o que nos remete ao contraponto do grafite com suas cores vivas ao imaginário ligado ao cinza das ruas, prédios e do céu de São Paulo.

Uma vez que a carroça colorida circula na/pela cidade, diferentemente do muro ou da fachada fixa em um determinado ponto ou local, os percursos que a arte e os enunciados postos em cena pelo grafiteiro realizam se dão a partir de uma conjuntura específica: o lugar do protesto na rua, em meio ao movimento/perambular do trabalhador por ruas, avenidas, bairros, viadutos, pontes. Trata-se de uma forma de textualização do sujeito pela/ na arte, tendo-se em vista “leitores-cidadãos” diversos, discurso esse atravessado pelos sentidos sociais ligados ao catador de recicláveis.

Se arte, protesto e reciclagem circulam juntos, produzindo efeitos diversos, há que se considerar que no espaço urbano há sempre movimentos não só de sujeitos, mas de sentidos. O enunciado posto em cena na carroça “Recicle seus conceitos” dá corpo a uma forma de interlocução com o outro, de modo que a expressão “seus conceitos” remete aos leitores possíveis dessa arte sobre a identidade dos catadores e a própria atividade de reciclagem (transeuntes, sujeitos em seus veículos, ciclistas).

Como forma de contradiscurso em relação ao preconceito dos moradores da cidade frente ao trabalhador, tal formulação “Recicle seus conceitos” faz intercruzar o domínio da reciclagem- ordem do ecologicamente correto, tido como relevante, necessário e fundamental na atualidade, sob um efeito de evidência, e o domínio das posições ideológicas/perspectivas- ordem das visões, dos preconceitos dos cidadãos em relação a esse tipo de trabalho.

Nas palavras de Orlandi (2004, p. 31) “a narratividade urbana tem vários pontos de materialização”. Compreender o discurso sobre a cidade, a partir das carroças em que arte e um dado gesto de escritura se inscrevem, nos coloca diante do fato de que a arte do grafite carroças é uma forma de o artista reafirmar seu pertencimento ao espaço da cidade, além de que o catador passa, neste gesto, a constituir suporte físico de crítica social.

O texto verbal “Recicle seus conceitos”, por conta da falta (elipse) de um determinante (conceitos de uso do lixo, conceitos de trabalho dos catadores, conceitos de consumismo exacerbado) aponta para uma incompletude e a opacidade do dizer que se constitui como falta necessária (HAROCHE, 1992) presente no texto verbal exposto na carroça, o que gera ambiguidade e põe em cena o silêncio - a expressão produz uma indeterminação de que conceito deve ser reciclado, atestando o papel do equívoco.

Em termos de funcionamento do interdiscurso, ao mesmo tempo em que o texto faz retornar um pré-construído que liga a identidade do catador de reciclável a uma história de desigualdades, preconceito e exclusão no espaço das cidades, esse produz um efeito metafórico: a prática de reciclar remetendo ao próprio aproveitamento de material migra, desliza para a possibilidade de o cidadão compreender este trabalho como digno e relevante e não como precário ou como atividade que “atrapalha o trânsito”.

Embora a condição da linguagem seja a incompletude, o anúncio emerge como uma unidade, a partir de um dado efeito de fecho (GALLO,1992). Vale dizer que o texto não se relaciona unicamente à dimensão da formulação, visto que na textualização há uma incompletude que marca uma abertura do texto em relação a um processo discursivo mais amplo, em virtude de sua inscrição na história.

 

Imagem 2

Fonte: arrastaoculturalguarulhos.blogspot.com.br/2012/12/o-pimp-my-carroca-quer-realizar-o-seu.html

 

A imagem 2 traz textualizada uma carroça na qual o texto não verbal é constituído pelo desenho do globo terrestre pintado em tons de azul claro e anil, além de cubos mágicos que se sobrepõem uns aos outros. A imagem do cubo mágico, uma espécie de quebra-cabeça tridimensional internacionalmente conhecido, tem uma memória e nos remete a sentidos ligados à complexidade relativa à resolução de um problema: no trabalho com o cubo, é preciso constituir cada face do objeto a partir de uma cor única, o que exige um esforço mental considerável. Jogando com a imagem do globo terrestre e de cubos mágicos, na textualização da imagem, emerge a reciclagem como problemáaacute;tica que demanda resolução/ação em termos mundiais. Em se tratando do texto verbal posto em uma caixa de texto em plano de fundo vermelho “Seu lixo é meu luxo”, é preciso considerar o papel do equívoco, ou seja, temos diferentes interpretações em jogo para sentidos ligados ao lixo e ao luxo na nossa formação social.

Com efeito, as formas materiais “lixo/luxo” tem uma espessura semântica, ou seja, remete a um enunciado opaco. Neste sentido, se a palavra não tem o sentido nela mesma, mas em relação às posições em jogo numa dada conjuntura sócio-histórica, fica a interrogação: o que é o lixo/resto para aquele que joga no lixo e o que é lixo/resto para aquele que busca algo entre os detritos? Qual a imagem social daqueles que sobrevivem com o resto, com o material passível de reciclagem? Em consonância com as palavras de Lagazzi (2009), o detrito é a contraparte do consumo, o dejeto a ser posto fora. E pode ser renda para as cooperativas de catadores, pode ser uma parte a ser reutilizada na arte, no artesanato, na oficina mecânica.

Enquanto sujeitos de linguagem, reconhecemos como evidência o gesto de separar os materiais e aproveitar aquilo que pode ser reutilizado, de modo que isto já se tornou uma prática corriqueira em nossa formação social tida como ecologicamente correta. Neste aspecto, há que se entender que somos pegos em redes de sentidos nas quais a representação predominante é de que podemos/devemos aproveitar os materiais, evitando o desperdício. Contraditoriamente, se há uma necessidade de aproveitamento dos recicláveis, discurso reforçado por práticas sociais e políticas, há, por outro lado, formas de preconceito e exclusão do sujeito-trabalhador que se envolve com esse tipo de atividade, de modo que cabe à arte produzir um espaço de questionamento- ao invés do lixo/da carroça velha, suja, é possível considerar a arte, a cor, a humanização de tal atividade.

Ora, se o texto, na perspectiva da AD, se apresenta como uma delimitação imaginária, configurada na incompletude do discurso, é preciso compreender que não é possível dizer tudo, que a significação é uma questão aberta, que não se fecha. Neste caso, é válido considerar que os sentidos produzidos na/pela carroça podem derivar para outros sítios de significação. Na transferência de sentidos, não é o lixo que deve ser reciclado, mas a cidade e seus moradores.

 

Pintar a carroça do trabalhador e equipá-la com recursos de segurança (esforço realizado pelo projeto encabeçado pelo grafiteiro Mundano), trabalho a ser (ex)posto, é um gesto a partir do qual a arte está imbricada em uma prática que se produz entre ruas, lixos, restos jogados, atirados, entre resíduos.

Nas palavras de Orlandi (2004), podemos dizer que essa arte, a do grafite, permite a subjetivação do trabalhador catador, por meio da arte. Segundo a autora, o grafite, por esta perspectiva, dá voz a pessoas que não têm oportunidade de serem ouvidas, sendo um gesto de pertencimento ao grupo e à cidade.

A formulação do enunciado “Seu lixo é meu luxo”, que permite levar às consequências que discurso é efeito de sentido entre interlocutores (PÊCHEUX, 1990), nos mobiliza no movimento de compreender como é imperativa, sob um efeito de evidência, a necessidade de compreensão da coleta e reciclagem como digno e relevante e como possibilidade de aproveitar recursos, reutilizar materiais, evitando o desperdício, protegendo o meio ambiente e gerando renda. Assim sendo, podemos dizer que o discurso é sempre uma relação a: o grafiteiro formula, o trabalhador divulga em meio ao seu próprio trabalho e cotidiano de estar de passagem, entre ruas, bairros (no movimento, na busca) e os sujeitos cidadãos e moradores, dos seus lugares sociais específicos, (re)interpretam e atribuem sentidos a essa arte e trabalho com a reciclagem.

 

Imagem 3

Fonte: http://www.flickr.com/photos/artetude/3062903885/in/set-72157600532498856

 

A imagem 3 traz uma carroça em que o texto não verbal expõe uma face cuja expressão é de um olhar inquieto e pensativo, que indaga o contexto da cidade. Mais uma vez são predominantes o tom sério do olhar, as narinas dilatadas e os lábios selados. Esta carroça abusa mais das cores, mesclando tons de azul claro e marinho (plano de fundo da face e do balão) com um tom pastel de fundo na sua parte superior, na qual se inscrevem pichações em tom de vermelho e rosa, além de um desenho de um rosto pensativo e contemplativo em tom azul. Dos lábios dessa imagem humana, sai um balão a partir do qual temos a inserção do enunciado: Meu carro não polui!.

Tal formulação “Meu carro não polui!” evoca um imaginário concernente ao problema da poluição das cidades e ao excesso dos veículos circulando por vias, marginais, avenidas, ruas, etc. Esse modo peculiar de (se)significar o catador (como aquele que não polui) é marcado pela negação, a partir da forma do advérbio “não” em contraposição aos que possuem carros, o que se relaciona à expressão parafrástica (o seu carro polui), uma forma de não-dito que significa em relação ao que a carroça faz circular.

O enunciado “meu carro não polui” convoca sentidos inscritos na memória que, por sua vez, faz ressoar com toda sua força material em nosso cotidiano a necessidade que se impõe, atualmente, relativa à produção/aperfeiçoamento de combustíveis alternativos menos poluentes, ao incentivo a formas de locomoção ecologicamente viáveis (caminhadas, uso de bicicletas, transporte público, caronas), além do controle do tráfico nas cidades a partir de rodízios de carros, como ocorre em São Paulo.

Tal materialidade, a carroça em sua forma artística, na imbricação verbal e visual, na busca de produzir conscientização e visibilidade, é um fato social que reclama sentidos. Isso nos permite compreender que esta arte de grafite na carroça, em sua especificidade, liga justamente a prática artística produzida pelo grafiteiro ao próprio cotidiano do trabalhador que coleta reciclável tido como suporte/veículo desta crítica social, prática discursiva que alia arte, reciclagem e uma reflexão sobre a poluição nas cidades a partir do uso dos veículos.

A representação de carroça como instrumento de locomoção precário, pesado, ultrapassado que necessita ser empurrado ou puxado neste grafismo é resignificada dentro da lógica do ecologicamente correto, ganhando outro estatuto: a carroça contribui para o meio-ambiente. É a arte ambulante que perambulando pela cidade passa a articular identidades e sentidos.

 

Considerações finais

À luz das reflexõesproduzidas no percurso de análise das materialidades significantes aqui expostas, relembramos que o texto, na perspectiva da AD, se apresenta como uma delimitação imaginária, configurada na incompletude do discurso.Assim, faz-se necessário compreender que a significação é uma questão aberta, que os sentidosnão se fecham, numa relação entre a repetição e a possibilidade de o sentido ser outro.

No caso de nossa análise, entendemos que os sentidos produzidos a partir dos processos de constituição, formulação e circulação da arte do grafite exposta nas carroças dão corpo a uma memória do trabalho dos catadores e da própria prática de reciclagem aliada a um discurso relacionado ao ecologicamente correto e ao reconhecimento da diferença na dimensão da cidade.

Em termos de memória discursiva que sustenta a formulação de todo dizer, observamos que os efeitos de sentido produzidos, a partir dos textos, convergem para a possibilidade de aceitabilidade desse outro mundo, desta profissão de catador, na medida em que ointerlocutor (o sujeito para o qual a arte se direciona) parece estarforadas experiências vividas pelo catador, olhando-o com espanto, incômodo e indignação.O estranhamento quanto à prática de empurrar carroças, de buscar materiais recicláveis, de se movimentar pela cidade toca justamente em um dado sentido estabilizado de trabalho com lixo, com material reciclável como desqualificado, informal, insalubre arraigado na memória discursiva.

Orlandi (2005, p. 187) preconiza que o sujeito “é parte do acontecimento do significante” e, além de ter a cidade fazendo sentido em si, ele também “significa (se significa) na cidade”. Neste caso, a regularidade dos textos aponta para uma representação de arte como lugar da reflexão sobre a cidade, abarcando desde o trabalho do catador até práticas de preservação do meio-ambiente. Contudo, é preciso lembrar que o recorte do socialproduzido pelo grafite de Mundano não tem um sentido único, visto que tais materialidades produzem diversos efeitos de sentidosconforme os bairros por onde o catador passa, os sujeitos-leitores que interpretam essa arte, pelas diferentes e contraditórias formas de conceber os sentidos na nossa formação social.

 

 

 

 

Referências

GALLO, Solange. Discurso da escrita e ensino. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.

GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento. Campinas-SP: Pontes, 2002.

HAROCHE, C. (1984) Fazer Dizer, Querer Dizer. São Paulo: Hucitec, 1992.

LAGAZZI, S. Materialidade e memória. Cadernos do CEAM (no prelo), 2009.

INDURSKY, Freda & FERREIRA, Maria Cristina Leandro (orgs.) Michel Pêcheux e a análise do discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz, 2005.

_____. O texto nos estudos da linguagem: especificidades e limites. In: Discurso e Textualidade. Eni Orlandi e Suzy Lagazzi-Rodrigues (orgs.). Pontes, 2006.

MARIANI, Bethânia (org). A escrita e os escritos: reflexões em análise do discurso e psicanálise. São Carlos: Claraluz, 2006.

ORLANDI, E. Análise de Discurso. Princípios e Procedimentos. Campinas, Pontes, 1999.

_____. Cidade dos sentidos. Campinas-SP: Pontes, 2004.

_____. Discurso e Texto. 2.ed. Campinas, Pontes, 2005.

_____. Análise de Discurso. In: Discurso e Textualidade. Eni Orlandi e Suzy Lagazzi-Rodrigues (orgs.). Pontes, 2006.

PÊCHEUX, M. O Discurso: estrutura ou acontecimento (1983). Campinas, Pontes, 1990.

PÊCHEUX, M. (1975) Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas-SP: Ed. Unicamp, 1988.

PÊCHEUX, M. (1969). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. In: GADET, F; HAK, T. (orgs.). Campinas-SP: Editora da Unicamp, 1990.

 

 

 

 

Data de Recebimento: 14/09/2015
Data de Aprovação: 03/11/2015

 

 

 

 

 


[1] Segundo Orlandi (2006, p.18), “a forma-sujeito é a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”.

[2] Conforme Indursky (2006, p. 75), a textualização corresponde à tessitura dos recortes e das cadeias discursivas, efeito de textualidade, efeito de homogeneidade.