“No carnaval a fantasia é minha. O corpo é meu”: memória e rupturas feministas na folia


resumo resumo

Dantielli Assumpção Garcia
Lucília Maria Abrahão e Sousa



3. O acontecimento discursivo e o carnaval: memórias e atualizações

Michel Pêcheux (1990) em Discurso: estrutura ou acontecimento, ao analisar o enunciado “On a gagné”, cantado nas ruas de Paris após a vitória do candidato à presidência François Mitterrand, o qual passa a circular com um sentido diferente daquele em que o enunciado existiria ligado à prática esportiva, propõe vermos o discurso como uma materialidade igualmente constituída por uma estrutura e por um acontecimento. Para Pêcheux (1990, p. 19), o acontecimento é o fato novo, as primeiras declarações em “seu contexto de atualidade e no espaço de memória que ele convoca e que já começa a reorganizar”. Assim, para o autor (1990, p. 17), o acontecimento é o ponto de encontro de uma atualidade e uma memória; o que se estabelece pela inscrição de um dizer antes estabilizado em outro lugar que passa a funcionar e fazer sentido de outro modo, criando outra inscrição de memória. Nas formulações das Marchas das Vadias, inscreve-se o dizer estabilizado acerca do carnaval como uma festa livre em um outro lugar, fazendo funcionar sentidos de opressão e violência a essa festa popular. Com a atualização dessa memória, outros sentidos passam a circular na sociedade e a interpelar os sujeitos que brincam o carnaval.

Buscando diferenciar tema e acontecimento discursivo, Guilhaumou e Maldidier (1993, p. 165-166) ressaltam que a noção de tema supõe a distinção entre “o horizonte de expectativas” – o conjunto de possibilidades atestadas em uma situação histórica dada – e o acontecimento discursivo que realiza uma dessas possibilidades, inscrevendo o tema em uma posição referencial. O acontecimento discursivo não coincide nem com a notícia jornalística, nem com os registros de um fato, designado pelo poder, na história. Ele é apreendido na trama dos enunciados que se entrecruzam em um momento dado. Assim, o acontecimento discursivo, possibilitando o surgimento de novos espaços de significação para o sujeito, pressupõe a relação entre dizeres que, ao se entrecruzarem, tendem a promover rupturas, ainda que um novo dizer seja, por princípio, formulado a partir das possibilidades que esse dizer encerra.

Ao formularem um dizer sobre a mulher e o carnaval, as Marchas das Vadias buscam romper com enunciados estabilizados, os quais sustentam que nesse evento festivo a mulher está no espaço urbano para servir como objeto de prazer ao homem. As formulações, produzidas/divulgadas pelas Marchas das Vadias, possibilitam o surgimento de novos espaços de significação ao sujeito-mulher, espaços esses em que a mulher pode se dizer livre e possuidora de desejos, entre eles, o de brincar o carnaval.