“Sentidos de milícia: entre a lei e o crime”, de Greciely Cristina da Costa.


Felipe Nascimento

Greciely Cristina da Costa, em seu livro Sentidos de milícia: entre a lei e o crime, publicado pela Editora da Unicamp, põe em cena a tensão entre o legítimo, o legal e o ilegal num espaço pouco discutido, mas, como qualquer outro espaço, determinado política-simbolicamente: a favela. O livro que resulta de sua tese de Doutorado, orientada por Eni Orlandi e defendida no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Unicamp, no ano de 2011, toma a atuação das forças armadas em favelas do Rio de Janeiro como ponto de partida para uma discussão antiga nos Estudos da Linguagem: a relação entre linguagem e mundo, por meio da noção de denominação.

 Em 2006, o combate ao narcotráfico, nas favelas do Rio de Janeiro, não se pautava em mandatos judiciais ou práticas consideradas legais, mas na expulsão/execução daqueles considerados inimigos. Passa a circular na mídia, então, a denominação “milícia” para se referir a policiais e outros agentes de segurança pública que passam a controlar o espaço ilegalmente. É a milícia que passa a dominar a favela, ofertando “segurança” à população local e construindo uma outra ordem nesse espaço político-simbólico. A polícia, agora denominada de milícia, passa a atuar na/pela falha do Estado e os sentidos produzidos pela alteração de “polícia” para “milícia” deslizam. Em um espaço dito ilegal, o da favela, é a “milícia”, não mais a “polícia”, que se faz presente. A autora, dessa forma, indaga-se por que chamar a polícia de milícia? (p. 23)

Dividido em seis capítulos, em seu livro, a pesquisadora faz um percurso peculiar em relação à milícia. Diferentemente de trabalhos do campo da Sociologia ou da Antropologia, ela não parte do sujeito dado, mas compreende como ele, em determinadas condições históricas, ocupa o lugar de autoridade e, ao mesmo tempo, de criminoso na favela. São policiais e, ao mesmo tempo, milicianos. Filiada, então, à Análise de Discurso fundada por Michel Pêcheux e tal como praticada no Brasil, a autora, ao se distanciar de perspectivas que compreendem a relação linguagem e mundo como direta e, portanto, transparente, questiona-se sobre a evidência dos sentidos, compreendendo o funcionamento da contradição no processo de denominação. Costa, então, toma a denominação enquanto um mecanismo ideológico que põe em movimento o processo de significação. É no jogo entre o silenciado, o dito e o dizível que “o processo de denominação se inscreve na política da palavra” (p. 40, grifo da autora), porque, ao se dizer X, silencia Y, Z etc.[1]. Ao denominar, os sentidos deslizam e estão sujeitos a serem sempre outros. No processo discursivo, há a repetição, a substituição de palavras, a deriva e, portanto, o efeito metafórico[2].

Para discutir os efeitos de sentido em torno da denominação “milícia”, a pesquisadora analisa diferentes discursos (discurso de moradores, discurso jurídico, discurso de imagens). É nessa teia de discursos sobre a milícia que a autora, no batimento entre interpretação e descrição, nos põe diante do real, do equívoco. Em cada atualização da denominação “milícia”, o que se observa é opacidade da palavra em jogo. Isto porque “não só atuam diferentes vozes na institucionalização de sentidos de milícia, diferentes posições discursivas se inscrevem no discurso sobre ela” (p. 36). A instauração da contradição reside na própria forma de denominar esses sujeitos: algo escapa, porque a denominação funciona por equívocos. Há algo da língua (o impossível de ser apreendido) e algo da história (a contradição) que permitem a polissemia[3] e a opacidade dos sentidos.

No batimento entre interpretação e descrição, a autora, ao mesmo tempo em que nos apresenta a teoria à qual se filia, nos descreve o percurso metodológico traçado em seu trabalho. Dessa forma, ao se voltar para o discurso sobre e os lugares de mediação (capítulo I), as noções de ideologia, interpretação e formações imaginárias nos afastam da relação linguagem-pensamento-mundo e nos põem diante de diferentes fios discursivos que constituem uma rede de relações de significação sobre a denominação “milícia”. Estamos, portanto, diante das condições de produção de significação (capítulo II), que nos permitem compreender como sujeito, sentidos e espaço estão materialmente ligados[4]. É no espaço político-simbólico da favela que a existência da milícia, por meio de práticas de violência e de dominação, evidencia a tensão entre o ilegal, o legal e o legítimo. Ou seja, enquanto pertencente ao aparato policial, o discurso do legítimo, porque é moral, é sustentado, assim a milícia age em função de proteger a população, o que lhe permite executar em função do “bem comum”. Por outro lado, esses sentidos deslizam e são deslocados, colando a imagem dos milicianos à insegurança e ao extermínio.

Nesse espaço marginalizado, que é o da favela, a milícia ocupa diferentes configurações em torno do domínio que pratica. A milícia é tanto aquela que pratica o domínio imposto (por meio da violência) quanto o domínio instaurado (por meio da autoridade). A denominação “milícia”, é o que a pesquisadora vai enfatizando ao longo de sua obra, produz deslocamentos de significação e é trabalhada por (faz funcionar) diferentes imagens sobre a favela e aqueles que nela reside. Ao denominar, a partir de uma posição-sujeito localizada numa formação discursiva, constroem-se discursivamente os referentes. É nesse sentido que a autora observa que é o nome que faz a fronteira[5], ao delimitar o lugar que cada sujeito ocupa na sociedade. Dizer, portanto, favela não é o mesmo que dizer comunidade ou bairro. Tais denominações vão construindo diferentes identificações sobre o espaço e os sujeitos que nele residem, delimitando aqueles que são considerados (ou não) cidadãos. Ao se textualizar o espaço, textualizam-se os sujeitos que dele fazem parte, o que leva a autora afirmar que “o corpo do espaço e o corpo da cidade encontram-se atados” (p. 92). Dizer sobre o espaço, é dizer sobre os sujeitos e vice-versa. .

É no capítulo III (Milícia: denominação ou redenominação) que Costa observa que o significante “milícia”, que é tomado pela autora como um acontecimento discursivo, ao mesmo tempo em que funciona na relação entre silenciar e definir, também funciona na tensão entre o mesmo, mas diferente, já que se produzem deslizamentos. É a forma pela qual o verbete “milícia” é definido no dicionário Aurélio e na Wikipédia e o deslocamento produzido pela atualização dessa denominação no discurso midiático, discurso de moradores e discursos de cientistas sociais que se observam diferentes construções discursivas para o referente. A denominação “milícia”, assim, funciona em relação a diferentes nomes: militar, polícia, grupo criminoso, mineira, polícia mineira, grupo de extermínio, grupo militar etc., que são redenominados por ela (p. 115).

A partir de diferentes posições-sujeito e formações discursivas, constroem-se diferentes sentidos que vão se ancorando em uma anterioridade e constituindo os sujeitos. São processos discursivos que vão complexando o lugar ocupado pela milícia no espaço da favela e em relação ao Estado. É na tensão entre o denominar e redenominar que os processos discursivos vão produzindo deslocamentos de sentidos (os sentidos são meta-forizados) e a indeterminação dos lugares ocupados pelos sujeitos é construída. Para Costa, assim como a denominação, a redenominação também é um mecanismo ideológico, mas que faz acionar “outra região do interdiscurso que recobre ou se recobre no processo de denominação” (p. 153). O silêncio é trabalhado em outra instância no processo de (re)denominação, tornando possível a circulação de outros sentidos e visíveis “gestos de resistência”.

No capítulo IV (Discurso de moradores sobre a milícia: dissonância de dizeres), por sua vez, na construção discursiva sobre o referente, é dada visibilidade ao discurso de moradores e às formações imaginárias em jogo no falar sobre a milícia. A autora observa que, na atualização de dizeres sobre os milicianos, o outro, o terceiro personagem, é evocado na situação de diálogo: “trata-se do miliciano que se presentifica porque ganha voz, ou melhor, (se) diz no discurso do entrevistado” (p. 156). É a dissonância de dizeres que se constitui no dizer dos sujeitos moradores sobre a milícia, abrindo lugar para vários/outros dizeres. Então, é por meio da materialidade linguística-histórica (o funcionamento do discurso direto e indireto) que o sujeito miliciano vai se presentificando na entrevista: enquanto o sujeito fala da milícia, ele é falado por ela. O sujeito esquece que está submetido ao discurso do outro e, dessa forma, fala pelo outro como se falasse a partir de si[6].

O discurso jurídico, que é o objeto de análise do capítulo V (Discurso jurídico sobre a milícia), é retomado pela autora para observar como, no espaço jurídico-político-administrativo, ao mesmo tempo em que se tenta abarcar os crimes cometidos pelas milícias, os sentidos sobre esses sujeitos deslizam na construção de um referente. O discurso jurídico funciona como se fosse um conjunto de leis logicamente aplicáveis aos cidadãos, ao funcionar no/pelo jogo da (in)determinação, como se todos os cidadãos tivessem os mesmos direitos e deveres. No entanto, o que se observa é que o discurso jurídico sobre a milícia traz à baila outros grupos que cometem crimes comuns, indeterminando os crimes cometidos pelos milicianos e, assim, igualando-os a outros. Por meio, então, de uma constelação de denominações (organização paramilitar, esquadrão, grupo e milícia particular), produz-se “a indeterminação de sujeitos e a diluição de sentidos” (p.181), indeterminando e inviabilizando os crimes praticados pelos milicianos, ao construir para eles um lugar entre a Lei e o crime.

Por fim, no capítulo VI (Discurso de imagens sobre a milícia), Costa se debruça sobre uma outra materialidade significante: a imagem. A autora se utiliza de imagens que circulam na Internet, mais especificamente nos arquivos de Imagens do site Google. Ao tomar a imagem como discurso, a pesquisadora observa que há uma regularidade nas imagens (a favela é o cenário e a presença de armas, policiais e homens encapuzados é uma constante), fato que constitui um discurso de imagens sobre a milícia que funciona por meio da memória discursiva, na sua relação com a ideologia. As diferentes imagens sobre a milícia textualizam distintos sentidos para milícia, funcionando, assim como a denominação, pela incompletude da linguagem/linguagens. Embora os discursos sobre a milícia sejam textualizados em nomes e imagens, ambos funcionam na/pela falha na construção do referente.

Sentidos de milícia: entre a lei e o crime, ao mesmo tempo em que apresenta um denso percurso teórico e analítico por diferentes discursos sobre a milícia, apresenta uma leitura instigante e prazerosa, levando o leitor, ao longo das mais de duzentas páginas do livro, a refletir sobre os deslizamentos produzidos no funcionamento da denominação “milícia”. Na tensão instalada entre o legal, o ilegal e o legítimo, a milícia se significa e é significada de diferentes maneiras, seja pelo silêncio, seja pelos deslizamentos que recai sobre a denominação “milícia”. É porque há real (da língua, da história, do silêncio) que, na tentativa de falar sobre a milícia, abre-se para o não-um e a impossibilidade de tudo dizer. A língua é sujeita a falhas e a história trabalha na/pela contradição, permitindo que outros/novos sentidos insurjam pelos processos discursivos e que o sujeito resista, pois “(Re)denominar também é, em certa instância, resistir, de alguma forma” (p. 223).

COSTA, Greciely Cristina. Sentidos de milícia: entre a lei e o crime. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.

 

Data de Recebimento: 28/05/2015

Data de Aprovação: 12/06/2015

 

 

[1] ORLANDI, E. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2007.

[2] Há a transferência de sentidos, a deriva, o deslizamento de sentidos.

[3] Eni Orlandi, na palestra Sentidos em fuga: efeitos da polissemia e do silêncio, proferida na Fiocruz em 19 de agosto de 2014, define polissemia como o movimento contraditório sobre o mesmo objeto simbólico. Acesso ao vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=u0Y2KGVkm9U  

[4]RODRÍGUEZ-ALCALÁ, C. Discurso e cidade: a linguagem e a construção da “evidência do mundo”. In: RODRIGUES, E et al. (Org.). Análise de Discurso no Brasil: pensando o impensado sempre. Uma homenagem a Eni Orlandi. Campinas: Ed. RG, 2011, p. 243-258.

[5] É uma menção direta ao título do artigo de Mónica Zoppi-Fontanna. É o nome que faz a fronteira. In: INDURSKY, F. (Org.). O múltiplo território da Análise do Discurso. Porto Alegre - RS: Sagra-Luzzatto, 1999, p. 278-292.

[6] O sujeito esquece que não é a origem de seu dizer, tampouco o controla.






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