“No carnaval a fantasia é minha. O corpo é meu”: memória e rupturas feministas na folia
Dantielli Assumpção Garcia Lucília Maria Abrahão e Sousa
4. “Eu não estou pedindo nada! Carnaval não é desculpa pra me assediar”: dizeres em confronto
Nestaparte de nosso trabalho, analisaremos alguns posts que circularam nas páginas do Facebook das Marchas das Vadias (Recife, Belo Horizonte, São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro) sobre a relação mulher-carnaval-homem-sociedade. Nossa finalidade é mostrar que essas postagens surgem como um acontecimento discursivo, o qual busca romper com uma memória estabilizada sobre a mulher e atualizar sentidos ao sujeito-mulher, ao sujeito-homem e ao carnaval.
Nas formulações das Marchas das Vadias, podemos perceber como o discurso-outro é trazido como memória para ser rompido/atualizado pelo movimento feminista. Para analisarmos o discurso-outro, partimos de uma reflexão de Authier-Revuz (1990, 1998) acerca da heterogeneidade discursiva. Para a autora, há dois tipos de heterogeneidades: a constitutiva e a mostrada (esta subdividida em marcada e não-marcada). A primeira não se apresenta na organização linear do discurso, uma vez que sua alteridade não é revelada, permanecendo no interdiscurso. A segunda traz marcas da presença do outro na cadeia discursiva, manifestando a alteridade ao longo do discurso. A heterogeneidade mostrada pode ser marcada, isto é, da ordem da enunciação e, portanto, perceptível na materialidade linguística (discurso direto, palavras entre aspas) e não-marcada, da ordem do discurso, sem visibilidade (discurso indireto livre, ironia etc). Assim, a heterogeneidade constitutiva é a presença do outro no discurso de forma não-mostrada, pois pertence à ordem do inconsciente. A heterogeneidade constitutiva constrói o discurso sócio-historicamente, está no seu exterior, atravessando as enunciações dos sujeitos. Já a heterogeneidade mostrada ocorre quando um locutor específico produz linguisticamente formas detectáveis no nível da frase ou do discurso que inscrevem o outro de forma marcada ou não marcada.
Em nosso corpus, o discurso-outro, além de aparecer marcado em algumas formulações sobre a mulher e sua relação com o carnaval, atravessa como memória, fazendo funcionar um dizer estabilizado sobre a mulher, seu corpo e sua relação com a sociedade que brinca o carnaval. É esse discurso-outro que o movimento feminista da Marcha das Vadias intenta romper, fundando um outro dizer sobre essas relações carnavalescas.
Temos, assim, na Marcha das Vadias de Recife, as seguintes formulações: