Revista Rua


Cidade narrada, tempo vivido: estudos de etnografias da duração
City told, Time lived: Studies in Ethnography of the Duration

Ana Luiza Carvalho da Rocha, Cornelia Eckert

Trata-se de um convite, ou antes, se contemplar o acontecimento urbano seja a partir da imagem mnésica que os habitantes enquanto atores sociais sugerem, seja do fundo comum de sentido ao qual pertencem. Tendo por objeto de reflexão as cidades modernas, a ênfase interpretativa dá-se sobre as formas de organização e interação entre indivíduos e suas redes de relações como campos de negociação da realidade em múltiplos planos. Trata-se de reconhecer o tempo urbano vivido através das narrativas de trajetórias e de itinerários de indivíduos/grupos neste jogo de eterna reinvenção de  “práticas de interação” de seus habitantes (Goffman, 1974: 42). Assim, pode-se redimensionar a cidade “etnografada” como objeto que realiza uma obra temporal, uma vez que seus territórios e lugares se prestam ao enraizamento de uma experiência de sentidos reinterpretada, sistematicamente, por uma comunidade de comunicação, emitindo múltiplas figurações de uma constante reordenação do viver coletivo.
Podemos concluir que, para nós antropólogos que trabalhamos nas cidades, “narrar a cidade” é a obra da tessitura dos relatos que ordenam memórias, testemunhos, percepções e sentimentos. A memória narrada é a forma da vida citadina ser tomada na inteligibilidade das experiências geracionais, e que situam cada sujeito da pesquisa como um narrador. Tais narrativas são geradas e geram sistemas simbólicos que configuram a rede de significados e o conjunto de valores em torno do qual os habitantes na cidade agenciam suas interações sociais.
Numa etnografia da duração, as narrativas recolhidas pelo antropólogo, em seu ofício, estão ali precisamente para circularem e, assim, provocar novas narrativas, e com elas novas formas de se viver a cidade.
A cidade interpretada se revela, então, como exercício reflexivo de ver-se a si mesma nas transformações profundas tanto quanto nas regularidades e rotinas de uma vida cotidiana. Nesse processo a consciência de si (do antropólogo) também é apreendida na sua gênese. A memória coletiva dos indivíduos ocidentais é também a sua.[2]


[2] Citamos aqui o artigo de BOURDARIAS, F., “Norbert Elias: les techniques du regard”. In. Sociétés. Revue des Sciences Humaines et Sociales. Paris : Dunod, n. 33, 1991. p. 259.