Revista Rua


A ironia exacerbada vira nada. Nada? Incômodos com Narradores de Javé
The extreme irony becomes nothing. Nothing?Troubles with Narradores de Javé

Wenceslao Machado de Oliveira Jr

Quando é sistemática, a ironia irrita. Nada parece lhe resistir pois nada mais pode ser levado a sério. Essa desenvoltura no que diz respeito à tragédia humana, a exibição da irresponsabilidade, a demissão doentia aparecem como signo de uma destruição de sentido que inflige aos outros as vicissitudes de uma ridicularização sem moderação. A ironia é fácil: nenhum engajamento, nenhuma crença, nenhum ideal, nenhum valor reconhecido, nada além da gozação infernal que destrói o sentido de cada coisa.
Henri-Pierre Jeudy (2001)
 
 
Um filme[1]que toca num tema político forte para muitos brasileiros: o abandono de suas casas e locais de vivência para que seus territórios sejam inundados pelas águas da represa de mais uma usina hidroelétrica. Narradores de Javé toca na desterritorialização forçada.
Um filme que toca neste tema a partir de outra política: a da escrita como forma de partilha do poder, de potência do poder instituído. Poder este que visa engendrar o futuro ao capturar nas palavras e frases escritas um passado importante, que não pode ser submergido, que não pode ser esquecido.
Um filme que toma a escrita como tema daqueles que não sabem se utilizar dela. O narrador do filme é analfabeto: “não sou um homem das letras”, diz ele. A beleza e o mistério do não conhecido. O narrador irá contar a história de sua glória, a história de quando ele tentou salvar o pedaço de chão onde nasceu e viveu das águas que subiriam para levar o progresso para longe dali.
Um narrador que conta lento uma história para preencher o tempo de espera daquele que perdeu o barco, perdeu a travessia e precisa aguardar que o barco volte e lhe leve para o outro lado da represa. Debaixo daquelas águas, Javé persiste em paredes escritas pelo único morador de lá que sabia o desenho das letras. Sabia também que a verdade das palavras é (somente) a verdade das palavras, que a realidade das palavras é


[1]“Nada mudaria a rotina do pequeno vilarejo de Javé se não fosse o fato de cair sobre ele a ameaça repentina de sua extinção: Javé deverá desaparecer inundado pelas águas de uma grande hidrelétrica. Diante da infausta notícia, a comunidade decide ir em defesa de sua existência pondo em prática uma estratégia bastante inusitada e original: escrever um dossiê que documente o que consideram ser os "grandes" e "nobres" acontecimentos da história do povoado e assim justificar a sua preservação. Se até hoje ninguém preocupou-se em escrever a verdadeira história de Javé, tal tarefa deverá agora ser executada pelos próprios habitantes. Como a maioria dos moradores de Javé são bons contadores de histórias, mas mal sabem escrever o próprio nome, é necessário conseguir um escrivão à altura de tal empreendimento. É designado o nome de Antônio Biá, personagem anárquico, de caráter duvidoso, porém o único no povoado que sabe escrever fluentemente. Apesar de polêmico, ele terá a permissão de todos para ouvir e registrar os relatos mais importantes que formarão a trama histórica do vilarejo. Uma tarefa difícil porque nem sempre os habitantes concordam sobre qual, dentre todas as versões, deverá prevalecer na memória do povoado. Na construção deste dossiê, inicia-se um duelo poético entre os contadores que disputam com suas histórias o direito de permanecerem no patrimônio de Javé”. Disponível em <www.webcine.com.br/filmessi/narrjave.htm>