Revista Rua


In-(cor)porar palavras
Incorporate words

Vivian Marina Redi Pontin

Em uma entrevista com a diretora do filme, Eliane Caffé, concedida ao programa Entrelinhas da TV Cultura, pode-se relacionar o cinema por ela dirigido com a literatura, tema principal do programa. Direcionando a resposta para Narradores de Javé, a diretora disse, uma vez que o filme não se baseou explicitamente numa obra literária[7], do desafio de transformar a palavra na personagem principal desse filme, sem que fosse de uma maneira retórica.
           Somente por essa proposta, descartando qualquer crítica que possa ser lançada à peça audiovisual (o que não é o propósito desse texto), pode-se pensar na possibilidade de tornar a palavra personagem pelo próprio falar do povo, pela oralidade, desmistificando o vínculo da palavra à sua forma escrita. Inscrita no papel, a palavra deve seguir uma norma, uma verdade imposta pela ciência (na fala da diretora – pela retórica).
           A tensão entre a palavra-personagem e as normas científicas de sua escrita conflui no filme. A palavra torna-se tema, ou desempenha um tema/sentido liberada dos limites dos personagens-corpo, ou seja, sem ter a necessidade da incorporação que personifica. E a norma é desmantelada pela escrita negligente.
           A maneira como os fragmentos da memória, tanto visiva, como experiencial[8] das personagens, combinam-se gerando o inesperado e o sugestivo (CALVINO, 1990). As imagens se repetem naquele povoado esquecido, poucas são as alterações de cada história da fundação do vilarejo contada pelas personagens deJavé, exceção ao protagonismo de cada uma delas. A palavra, pois, é quem ganha relevo sobre as imagens – entonações e potências numa narrativa que faz o fantástico brotar do cotidiano.


[7]Contrariamente ao que aconteceu com outras duas produções da diretora: Kenoma (1998) que foi baseado na literatura de Jorge Luis Borges e o Sol do meio dia (2009) baseado em Crime e castigo, de Fiódor Dostoievski (1866).
[8] A esse respeito Calvino (1990) escreve: “Antigamente a memória visiva de um indivíduo estava limitada ao patrimônio de suas experiências diretas e a um reduzido repertório de imagens refletidas pela cultura; a possibilidade de dar forma a mitos pessoais nascia do modo pelo qual os fragmentos dessa memória se combinavam entre si em abordagens inesperadas e sugestivas. Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos distinguir mais a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos na televisão. Em nossa memória se depositam, por estratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável que uma delas adquira relevo” (CALVINO, 1990, p. 107).