Revista Rua


Vagabmundear pensamentos - ciência e loucura e arte
Vagabond thinking - science and art and madness

Susana Oliveira Dias

com o ofício de escrivã. O papel-tela-do-cinema criava o clima, orientando Luzes e Sons a operarem em regimes de Claro ou Escuro, Visto ou Oculto, Música ou Silêncio, Mar ou Sertão. O Cientista abria mapas, colocava aspas. Fotografava os pormenores. Noticiava as regras para a sintaxe. Controlava e purificava os procedimentos. Tudo para fazer valer a função primordial que Escrita deveria desempenhar: fazer valer a voz da maioria, reconstituir a história exemplar a partir de restos antepassados enterrados e calcificados na memória. Escrita achava aquilo tudo coisa de gente doida.
            Apesar de aceitar sua missão, o revirar dos olhos e seu riso irônico denunciavam suas despretensões. Recusar o (esse) Papel. Quase não agia. Respondia a poucos estímulos. Para os moradores-espectadores do Vale-Filme talvez estivesse acometido de descauso constante, talvez se mexesse pouco para salvar o vale. Mas o que era salvar?
Escrita não compreendia sua missão, a ideia de combates-contra, de destruição e repulsão, em que as forças do combatente (Sertão) e as potências diabólicas do combatido (Mar) estavam determinadas. Em suas Confabulações com o filósofo Gilles Deleuze, imaginava um combate-entre. Deleuze (1993, p. 151) dizia-lhe baixinho: “trata de apossar-se de uma força para fazê-la sua. O combate entre é o processo pelo qual uma força se enriquece apropriando-se de outras forças e se juntando a elas num novo conjunto, num devir”. Ao que ele pensava furtivo: mas isso é um querer a invasão… Admitir que, também poeira são as águas, as lágrimas.
Permanecia, assim, como que desentendida do fazer Escrita.
Numa espera infinita, soturna, do acontecer Escrita.
Nesse nada fazer, nada entender, não fazia. Fazia menos, sempre menos do esperado. Preferia as paredes e os sonhos. Era intolerante à Luz, ao Certo, ao Errado, ao Ou. Tinha os olhos cheios de poeira. Espécies de partículas coloridas que se agitavam entre Javé, ciência, arte e loucura. Esfregava nervosamente as narrativas. “Não, não!”, gritavam. Tarde demais. Palavras arranhadas e feridas. Lesões na córnea gramatical. Abertura para infecções e afecções desejadas.
 
Escrever como um cão
que faz seu buraco, um rato que faz sua toca.
E, para isso, encontrar seus próprios
pontos de subdesenvolvimento,
seu próprio patoá,
seu próprio terceiro mundo,
seu próprio deserto
(DELEUZE e GUATTARI, 1977, p. 28-29)