Revista Rua


A patrimonialização do cotidiano: desafios para as políticas públicas
The diurnal heritage: challenges for public policies

Fabíola Rodrigues

 

Essa constatação tem consequências interessantes: a política patrimonial em seu esforço de salvaguardar, conservar e preservar testemunhos relevantes da cultura material e, às vezes, imaterial de um determinado território, não raras vezes opera escolhas que reforçam clivagens sociais profundas preexistentes – no embate entre os testemunhos que documentam a excepcionalidade e aqueles que documentam a cotidianidade é quase certo que a força da excepcionalidade prevalecerá.
Para quem atua como policy maker da política patrimonial não é nada confortável enfrentar essas clivagens e, muitas vezes, ver-se presa nas poderosas armadilhas da parafernália teórico-metodológica empregada para justificar escolhas técnicas e políticas coalhadas de subjetividade. No entanto, mais difícil ainda, é, por vezes, enfrentar a estupefação e a incredulidade de outros “agentes do campo” quando nos propomos subverter as prioridades da política.  Isso porque, afinal, a afetividade nas práticas patrimoniais é ainda “irmã bastarda” da arquitetura, que quase sempre pauta as decisões no que diz respeito às razões que orientam a preservação de bens de interesse cultural.
Inverter as prioridades da política é, quase sempre, sinônimo de questionar o reputado inabalável monopólio da arquitetura como elemento definidor do que merece e do que não merece ser preservado pelo instituto do tombamento - essa limitação ao direito de propriedade que conhecemos do direito português e que incorporamos ao nosso ordenamento jurídico a partir da edição do Decreto-Lei nº 25, de 1937, que instituiu o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).
É verdade que o próprio instituto do tombamento contribuiu para que a arquitetura fosse alçada à condição de substrato técnico e teórico da política patrimonial, uma vez que o registro no livro do tombo pressupunha, ao mesmo tempo, uma materialidade indiscutível e uma imutabilidade garantida por força da própria limitação ao direito (de uso) da propriedade.
No entanto, é interessante observar que mesmo quando não se trata do tombamento de um bem, mas, por exemplo, de um inventário com um recorte qualquer, da delimitação de uma área envoltória ou de uma simples listagem de bens de valor patrimonial, a arquitetura, o elevado valor estético, a distinção das formas e de estilos se impõem, imperativamente, como critério por excelência de escolha.