Revista Rua


Memória, narrativa urbana e favela: efeitos de sentido em um videoclipe
Memory, urban narrative and favela: effects of meaning in a videoclip

Lucia M. A. Ferreira*, Andréa Rodrigues**

tradicionalmente atravessados pelos discursos dominantes. O discurso é um lugar de luta pelo direito de significar e precisamos entender essas práticas como uma arena de disputas e negociações por esse direito. Se, ao se apropriarem da tecnologia, essas escritas permitem a reiteração de sentidos já estabilizados no imaginário, elas também permitem que se teçam novas redes semânticas sobre a cidade e sobre os sujeitos.
 
Efeitos de sentido na imbricação de diferentes materialidades significativas
 
Consoante Pêcheux (1999, p. 56), “a memória é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos”. A memória está, portanto, inscrita na trama dos discursos em circulação, permeável às transformações que ocorrem no tecido sócio-histórico. É nesse sentido que, como afirma Gondar (2005, p. 16-17), retomando Foucault, a memória, tecida por nossos afetos e por nossas expectativas diante do devir, pode se constituir como um foco de resistência e instrumento privilegiado de transformação social: “Recordar, nesse caso, não é somente interpretar, no presente, o já vivido; a escolha do que vale ou não ser recordado funciona como um penhor e, como todo penhor, diz respeito ao futuro.”
Na análise que ora empreendemos, procuramos examinar, na espessura histórica do vídeo, os gestos de interpretação que nortearam sua realização e os efeitos de sentido do acontecimento discursivo que foi sua divulgação no portal Voz das Comunidades. Que silenciamentos podem ser observados? Como funcionam as réplicas, polêmicas e contra-discursos? Como opera o programa de leitura da imagem, do texto e da música no vídeo, com relação à memória da favela e do asfalto?
Por lidarmos com um objeto simbólico materialmente heterogêneo, entendemos que as estruturas materiais distintas que constituem a cadeia significante materializada no vídeo funcionam em composição (LAGAZZI, 2009), fazendo trabalhar, nas suas especificidades e no movimento do seu encontro, a incompletude e a falha constitutivas das materialidades simbólicas. Cabe ressaltar que, nesse contexto, compreendemos a incompletude não como falta de inteireza, mas como algo que não se fecha, que está aberto, como é próprio de processos de significação em diferentes materialidades. Orlandi (2004, p.12) destaca esta dimensão dos processos significativos, que chama de “abertura do simbólico”. Apesar de sua vocação para a unicidade, a discrição e a completude, a linguagem precisa conviver com a falta, a falha e o