Revista Rua


Memória, narrativa urbana e favela: efeitos de sentido em um videoclipe
Memory, urban narrative and favela: effects of meaning in a videoclip

Lucia M. A. Ferreira*, Andréa Rodrigues**

É preciso, no entanto, tornar mais visíveis os mecanismos discursivos mobilizados no clipe nessa reconstrução imaginária da favela, de seus habitantes e de suas práticas sociais. Lembrando, com Gondar (2005, p.17) que “há sempre uma concepção de memória social implicada na escolha do que conservar e do que interrogar” e que essa escolha envolve uma aposta no futuro, procuramos, na imbricação das diferentes materialidades significativas, as marcas desse discurso.
No clipe, a filiação ao discurso da integração favela-asfalto é marcada pela tensão entre o novo e a tradição, entre a repetição e a reformulação, entre a paráfrase e a polissemia, marcadas na melodia do samba de ritmo cadenciado, fácil, na letra e nas imagens. Nessa perspectiva, a memória do samba empresta ao clipe a contradição que marca a sua trajetória: de manifestação cultural de herança negra, marginalizada no início do século XX, passa a ser símbolo inquestionável da musicalidade do brasileiro.
O equívoco e a contradição se manifestam desde o título da música e do clipe – Favela Fashion Week –, um mix linguístico, um híbrido que marca uma posição discursiva que mobiliza duas redes de memória que funcionam de forma dissonante. Os deslizamentos sugeridos pela denominação têm como efeito de sentido a ironia, o deboche. É justamente esta ironia diante da contradição que irá marcar o processo discursivo no vídeo.
 
Disponível http://www.vozdascomunidades.com.br/videos/favela-fashion-week-reuniao-de-amigos-clipe-oficial
 
Na abertura do clipe veiculado no Portal, uma cena do cotidiano da favela: uma birosca e três rapazes tomando cerveja; ao fundo, o vendedor. Há uma interrupção brusca da cena e, em um novo cenário, que representa o backstage de um desfile de modas, o foco da câmera move-se, devagar, de uma fotografia de corpo inteiro de Gisele Bündchen para mostrar, em plano fechado, o rosto de uma bela jovem negra que retoca a maquiagem olhando-se no espelho.