Revista Rua


Personagens nas ruas do Rio de Janeiro do século XIX: leitura de A moreninha (1844) e O moço loiro (1845), de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882)
Characters in the streets of Rio de Janeiro of the nineteenth century: a reading of A moreninha (1844) and O moço loiro (1845), by Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882)

Joelma Santana Siqueira

por Carolina. O narrador nos diz que “se o inocente moleque lhe apronta o chá muito cedo, apanha meia dúzia de bolos, porque quer ir vadiar pelas ruas; se no dia seguinte se demora só dez minutos, leva dois pescoções, para andar mais ligeiro” (M, p. 127)[2]. Augusto desconta no pobre do Rafael seu mal humor do momento.
Outros escravos domésticos são descritos como “decentemente vestidos” em dias de festa, servindo os convidados. Há também a presença de escravos de ganho, a exemplo de uma preta que vende empadas e se encarrega de levar cartas de namoro da jovem Gabriela, amiga de Carolina. Tobias, escravo considerado um “maldito criolo” pelo estudante Fabrício, é, na visão deste personagem, um escravo astuto e que o extorque, cobrando em demasia pelas cartas que entrega a sua pretendente. Não há menção ao nome das ruas percorridas pelos escravos. Fabrício conta que a primeira vez que encontrou o escravo Tobias, na porta de um camarote do teatro, após perguntar-lhe se pertencia às jovens que ele observava, o escravo respondeu que sim e que “elas moram na rua de... número... ao lado esquerdo de quem vai para cima” (M, p.19). Suprimir os nomes dos lugares poderia causar curiosidade no leitor.
A mentalidade dos jovens, muitas vezes, nada romântica, é percebida pelos diálogos que trocam entre si. Fabrício contou a Augusto que evitava namorar moça de sobrado como uma medida econômica, pois evitava pagar o moleque para levar os recados e podia dar “sossegadamente, e à mercê das trevas”, seus “beijos entre os postigos das janelas” (M, p.16). O estudante Leopoldo, por sua vez, explicou a Augusto o que pensa sobre as moças da roça e as moças da cidade:
 
– Tu falas em amor, Augusto? Ainda bem que somos ambos estudantes da roça e posso dizer-te agora o que entendo, sem medo de ofender suscetibilidade de cortesão algum. Pois ainda não observaste que o verdadeiro amor não se dá muito com os ares da cidade? ... que por natureza e hábito, as nossas roceiras são mais constantes que as cidadoas? Olha, aqui encontramos nas moças mais espírito, mais jovialidade, graça e prendas, porém, nelas não acharemos nem mais beleza, nem tanta constância. Estudemos as duas vidas. A moça da Corte escreve e vive comovida sempre por sensações novas e brilhantes, por objetos que se multiplicam e se renovam a todo momento, por prazeres e distrações que se precipitam; ainda contra a vontade, tudo a obriga a ser volúvel: se chega à janela um instante só, que variedade de sensações! Seus olhos têm de saltar da carruagem para o cavaleiro, da senhora que passa para o menino que brinca, do séquito do casamento para o acompanhamento de enterro! Sua alma tem que sentir ao mesmo tempo o grito de dor e a risada de prazer, os lamentos, os brados de alegria e o ruído do povo; depois tem o baile com sua atmosfera de lisonjas e mentiras, onde ela se acostuma a fingir o que não sente, a ouvir frases de amor a todas as horas, a mudar de galanteador em cada contradança; depois tem o teatro onde cem óculos fitos em seu rosto parecem estar dizendo: és bela! E assim enchendo-a de orgulho e muitas vezes de vaidade; finalmente, ela se faz por força e por costume tão inconstante como a sociedade em que vive, tão mutável como a moda dos vestidos. Quereis agora ver o que se passa com uma moça da roça? ... (MACEDO, 1987, p.130-1).
 


[2] Todas as citações da obra A moreninha dentro dos parágrafos foram referidas por meio da abreviação “M” e página.