Revista Rua


Para além do "sempre igual": cotidiano e encenação urbana no repertório de Chico Buarque
Beyond the routine: daily life and urban mise en scène in the Chico Buarque's repertoire

Flávia de Souza Fontineles

Cada paralelepípedo / Da velha cidade / Essa noite / Vai se arrepiar / Ao lembrar / Que aqui passaram / sambas imortais / Que aqui sangraram / pelos nossos pés / Que aqui sambaram / nossos ancestrais
           
É dessa forma que, como observa Rouanet (1992), o flâneur lê, nas ruas, a história daqueles espaços e também a sua: “cada rua para ele é uma ladeira que desce em direção ao passado, o dele e o da cidade” (p.50). 
Entretanto, se a cidade dá pistas da história, a história também dá pistas do espaço urbano e o faz a partir do relato das práticas que têm, na cidade, seu objeto e ambiência. Essas práticas são a substância da vida cotidiana que se presta à apreensão pela atenção às suas modalizações.
Nesse sentido, Certeau (1994) chama atenção para o fato de que “os relatos cotidianos contam aquilo que, apesar de tudo, se pode aí fabricar e fazer. São feituras de espaço” (p. 207).
Assim, os relatos do cotidiano são objetos muito afeitos ao interesse da história cultural que “tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1990, p. 17).
Sob essa perspectiva, tomado como sujeito-suporte dos relatos citadinos, numa modalização cidade e musicalidade, Chico Buarque traz, em sua obra, muitas referências ao cotidiano das cidades, às rotinas e iterâncias próprias à nossa experiência diária no mundo.
Assim, se o crescimento desordenado da cidade aliado à especulação imobiliária fez (e ainda faz) brotar do chão um novo prédio, num piscar de olhos, em cada grande centro urbano, em “Carta ao Tom” (1977), figuram os versos “minha janela não passa de um quadrado / a gente só vê Sérgio Dourado / onde antes se via o Redentor”.
E se, por outro lado, das favelas “não sai foto nas revistas”, um bom relato do cotidiano desses espaços urbanos é apresentado na canção “Subúrbio” (2006), em cujas rimas as “casas sem cor” dos bairros de “ruas de pó” ganham pintura com a expressão das práticas constitutivas de seus espaços.
No cancioneiro de Chico Buarque, em qualquer das músicas aqui referidas e ainda em outras, são encontrados não apenas referências a eventos e circunstâncias relativos ao cotidiano urbano, mas legítimos relatos, emergidos de uma espécie de memória difusa, de algumas das encenações cotidianas que, reconhecidamente, constituem as cidades.