Revista Rua


Para além do "sempre igual": cotidiano e encenação urbana no repertório de Chico Buarque
Beyond the routine: daily life and urban mise en scène in the Chico Buarque's repertoire

Flávia de Souza Fontineles

É este aparentemente contraditório par – diferença e repetição – que imprime ritmo ao cotidiano. Aliás, o ritmo é uma boa imagem, evocada por Maffesoli e lembrada por Zaccur (2003), para compreender a associação entre movimento e estabilidade. E é esse ritmo, essa variação naquilo que é diário, que nos permite escapar do que Benjamin, conforme recorda Rouanet (1992), classifica como a temporalidade do inferno, o tempo da repetição infinita (castigos eternos), sem diferenciação. Lembrando Lefebvre (1972, p.94): “La calle se repite y cambia como la cotidianidad: se reitera en el cambio incesante de las gentes, los aspectos, los objetos y las horas”.
            Assim, o cotidiano que, no senso comum, tem um sentido muito associado à repetição, é composto, em seu desenho geral, por eventos assemelhados, porém não idênticos. No dizer de Teixeira (1990),
 
a vida cotidiana se compõe de micro-atitudes, de criações minúsculas, de situações pontuais e totalmente efêmeras. É, stricto sensu, uma trama feita de fios minúsculos estreitamente tecidos, onde, cada um, em particular, é exatamente insignificante. Mas é exatamente essa insignificância que constitui a força e garante a permanência da vida cotidiana. A existência cotidiana é ruidosa, polissêmica, constituída de sombras e luzes, em uma palavra, é feita por um homem ao mesmo tempo ‘sapiens’ e ‘demens’. (p.103).
 
            A impressão de repetição experienciada no dia-a-dia, entretanto, pode justificar-se pelo fato de que, na maior parte dos casos, as diferenças abrigadas sob a cotidianidade são sutis e se limitam a produzir iterâncias, como destaca Lefebvre: “el espetáculo de la calle, variable e idêntico, ofrece solo sorpresas limitadas, salvo accidentes [...] lo sensacional rompe rara vez la monotonía diversa de la calle” (1972, p.94). O extraordinário raras vezes chega a suspender o cotidiano em suas linhas gerais e essa suspensão, como mais um tema afeto à vida nas cidades, também é referenciada no cancioneiro de Chico Buarque.
 
SUSPENSÃO DA COTIDIANIDADE
 
            O calendário das cidades inclui ocasiões em que a rotina não é propriamente destituída, mas é suspensa por um período determinado e não muito longo. Eventos variados podem propiciar essa suspensão momentânea, contudo, aqueles ligados à arte são particularmente propícios a essa interrupção do fluxo rotineiro do dia-a-dia. Como aponta Negrão de Mello (1998, p.193),