Revista Rua


Para além do "sempre igual": cotidiano e encenação urbana no repertório de Chico Buarque
Beyond the routine: daily life and urban mise en scène in the Chico Buarque's repertoire

Flávia de Souza Fontineles

brincadeiras como o “futebol de rua” ou a “guerra de pipa no céu” são lembradas na canção “Doze anos” (1977/78), em meio a outros registros de brincadeiras típicas do contexto citadino de outra época em que boa parte das crianças levava o dia “trocando figurinha / matando passarinho / colecionando minhoca / jogando muito botão / rodopiando pião / fazendo troca-troca”. Ademais, no universo de obras para o público infantil, “História de uma gata” (1977) – composição para o musical infantil “Os saltimbancos” – traz o cotidiano de uma gata na cidade, dividida entre o conforto do apartamento e o convívio “no meio da gataria pela rua”.
A experiência dos habitantes da cidade se mostra no cancioneiro de Buarque, contudo, não apenas multiplicada em exemplares ou aspectos tematizados, mas também em nuanças contrastadas. Assim, o próprio aspecto rotineiro da vida cotidiana, destacado no bastante conhecido e já citado verso da canção “Cotidiano” cede lugar, em outras canções, para o rompimento com a rotina,[1] ou mesmo para as ocasiões de suspensão da cotidianidade.
Essas pequenas diferenças no que experimentamos como rotineiro dizem respeito ao que Zaccur (2003), apoiada no referencial de Deleuze, aponta como iterância: “o que aparentemente se repete, no próprio processo da repetição, tanto se reitera como se recria, produz iterâncias realimentadoras” (p.180).
O cotidiano aparece na obra de Chico Buarque em suas rotinas e iterâncias, em repetições e diferenças retroalimentadoras. É nessa dinâmica da iterância que os amantes se encontram na canção Valsinha (1970):
 
Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar
 
 Por outra parte, o relato da viagem, em Bye Bye, Brasil (1979), revela, no intempestivo percurso do viajante, certa regularidade: “Bye bye, Brasil / A última ficha caiu / Eu penso em vocês night and day / Explica que tá tudo okay / Eu só ando dentro da lei”.


[1] A própria canção “Cotidiano” foi, numa de suas gravações mais conhecidas (do disco Caetano e Chico juntos e ao vivo, 1972), unida, nas vozes de Chico Buarque e Caetano Veloso, a “Você não entende nada”, música de autoria do próprio Caetano que relata justamente a tensão estabelecida no cotidiano e o desejo de ver o inusitado insurgir da rotina, em versos como estes: “Você tem que saber que eu quero correr mundo/ Correr perigo/ Eu quero é ir-me embora/ Eu quero dar o fora/ e quero que você/ venha comigo/ todo dia”.