Revista Rua


Do silêncio angustiante aos sentidos desviantes: Subversão discursiva na microesfera do exercício de poder
(Of the silent distressing to the senses deviant: Discursive subversion in the microsphere of the exercise of power)

Camila Targino e Souza, Cristina Teixeira Vieira de Melo

que a esposa branca, coagida pelo marido, teria acolhido a criança negra, fruto de uma relação proibida entre seu esposo com uma mulher negra. Mas antes de cedermos à tentação de querer instaurar uma coerência histórica linear para as representações, pretendemos trazer à tona alguns sentidos desviantes, algumas contradições dos processos históricos, pois, como assinala Foucault:
 
Uma formação discursiva não é, pois, o texto ideal, contínuo e sem aspereza, que corre sob a multiplicidade das contradições e as resolve na unidade calma de um pensamento coerente; não é tampouco, a superfície em que se vê refletir, sob mil aspectos diferentes, uma contradição que estaria sempre retirada, mas sempre dominante. É antes um espaço de dissensões múltiplas; é um conjunto de oposições diferentes cujos níveis e papéis devem ser descritos. (FOUCAULT, 1972: 192).
           
Assim, longe de nos conformar com a interpretação do que se poderia chamar de história dos vencedores, que não cansa de perceber o exercício de poder como sendo algo unilateral e exclusivo dos senhores brancos[13], objetivamos apontar outras possibilidades interpretativas para a imagem da mulher branca com a criança negra.
 
A FORMAÇÃO IMAGINÁRIA E SUAS CONTRADIÇÕES
 
Esta fotografia remete a personagens da história clássica do colonialismo: a ama e a iaiazinha. Sem querer problematizar muito, pode-se dizer que é uma “cena de afeto” que perpassou tantas relações familiares do Brasil colonial, porém, o faz de maneira imaginada, reinventando e transformando a cena conhecida em uma paisagem social pouco vista nas fotografias do século XIX. A imagem da mulher branca com a criança no colo está, ao mesmo tempo, demasiado distante e demasiado próxima das imagens das amas-de-leite, possui parte da cena clássica, mas não é uma cópia dessa dominância de sentido, pelo contrário, apresenta-se cheia de discrepância. Traz na resistência discursiva a possibilidade de mudanças de posicionamentos nos enunciados.


[13] Michel Foucault explica que na teoria jurídica clássica o poder é pensado como um “direito de que se seria possuidor como de um bem e que se poderia, por conseguinte, transferir ou alienar, total ou parcialmente, para constituir um poder político, uma soberania política”. Mas, em sua concepção, o poder possui uma funcionalidade específica, que em nada tem a ver com as suas imagens tradicionais (teoria jurídica clássica e marxismo econômico). Para o autor, o poder é, antes de mais nada, exercício: “Dispomos da afirmação de que o poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação, como também da afirmação de que o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de forças.” (FOCAULT, 2006: 175).