Revista Rua


Do silêncio angustiante aos sentidos desviantes: Subversão discursiva na microesfera do exercício de poder
(Of the silent distressing to the senses deviant: Discursive subversion in the microsphere of the exercise of power)

Camila Targino e Souza, Cristina Teixeira Vieira de Melo

A análise da microesfera do exercício do poder[14] na intimidade dos sobrados pode nos conduzir a diversas interpretações. Podemos dizer que a posição discursiva ocupada pela mulher relativiza a posição de “mando” do homem branco, burguês. Se a pequena criança negra lhe foi imposta para criação pelo marido, os contatos, entre mãe e enteado, deveriam ser realizados da porta da cozinha para dentro. No entanto, contra todas as regras morais da sociedade da época, que buscavam silenciar uma paternidade obscurecida, a criança negra sai do anonimato. Mais ainda, ela surge na área externa do sobrado, ou seja, aos olhos de todos, acompanhada da senhora dona da casa. A esposa reage com insubordinação ao marido, assumindo uma criança negra em suas mãos e explicitando para toda uma sociedade sua discordância com relação à negligente composição familiar do filho bastardo. Som de uma passividade inexistente: a mulher confronta o marido. Também, por que não pensar que essa senhora protagoniza uma cena de afetividade que invade às avessas o espaço nobre da fotografia do Brasil da segunda metade do século XIX?
Sabendo que, sobretudo, nas três últimas décadas do século em questão, o discurso abolicionista já se fazia presente nos jornais locais devotados ao tema, nas instituições em defesa da causa e nos comícios de rua[15], podemos afirmar que o ideário abolicionista também adentra nesta fotografia. Ao colocar-se no lugar de uma ama-de-leite branca com um bebê negro no colo, a mulher experimenta uma passagem clássica do colonialismo imaginado de forma contrária, opondo-se, assim, à teoria da diferença racial, pretenso saber que se auto-afirmava como verdade científica.
Também não devemos encerrar a figura desta mulher unicamente como a de uma sinhá. Poderia ser esta mulher uma ama-de-leite mestiça? Uma mucama branca? Se olharmos bem suas características físicas, veremos que seus cabelos são crespos. Seu vestido não ostenta uma ornamentação exagerada, traz apenas um delicado trabalho de renda no avental e de bico na blusa de manga que cobre todo o pescoço. Mas, longe de tomar estas características de seu aspecto físico e de suas vestimentas como elementos


[14] A defesa da idéia de um poder fluido, localizado, descentralizado favorece nossa reflexão no que diz respeito à formação de imagens díspares como a que estamos analisando. Tentamos empreender uma interpretação que produza sentidos relativizadores aos dos dominantes: “E se é verdade que o poder político acaba a guerra, tenta impor a paz na sociedade civil, não é para suspender os efeitos da guerra ou neutralizar os desequilíbrios que se manifestam na batalha final, mas para reinscrever perpetuamente estas relações de força, através de uma espécie de guerra silenciosa, nas instituições e nas desigualdades econômicas, na linguagem e até no corpo dos indivíduos.” (FOUCAULT, 2006: 176).  
[15] Humberto Fernandes Machado. 2007. Intelectuais, imprensa e abolicionismo no Rio de Janeiro. Associação Nacional de História. ANPUH. XXIV Simpósio Nacional de História. http://snh2007.anpuh.org/resources/content/anais/Humberto%20F%20Machado.pdf. Acessado em 27/02/2009.