Revista Rua


Do silêncio angustiante aos sentidos desviantes: Subversão discursiva na microesfera do exercício de poder
(Of the silent distressing to the senses deviant: Discursive subversion in the microsphere of the exercise of power)

Camila Targino e Souza, Cristina Teixeira Vieira de Melo

Esta peça[1] faz parte da Coleção Francisco Rodrigues[2], um dos mais importantes acervos fotográficos do Brasil, que guarda a memória visual da história social do século XIX e início do XX. Trata-se de uma albumina impressa em suporte cartão de visita[3]. Muito embora os retratos afixados nesses cartões tenham significado a popularização da fotografia, mesmo no final do século XIX, esta ainda era um artigo de luxo que, em alguma medida, ficou restrito à burguesia[4]. Daí, talvez, o interesse dos transeuntes. Além disso, até o século XIX predominava a captação de retratos fotográficos em estúdio, o fato de essa fotografia ser tirada nos jardins do sobrado poderia reforçar a curiosidade dos passantes[5]. Por outro lado, o estranhamento dos transeuntes poderia advir do inusitado da cena: uma mulher branca carregando em seu colo um bebê negro, já que a imagem mais recorrente de então era a da ama-de-leite negra com uma criança branca no colo – o inverso da representação analisada.
Diante desta instigante imagem, algumas perguntas podem ser lançadas: seria esta jovem senhora uma sinhá?   Neste caso, quem seria o pai da criança que ela carrega? Seria o fruto da relação proibida de seu marido com uma mucama? Poderia esta figura feminina ser uma escrava branca?  Enfim, quais atravessamentos


[1] Na Coleção Francisco Rodrigues de Fotografia, pertencente ao acervo da Fundação Joaquim Nabuco, essa imagem está catalogada sob a marcação FR. 12.724.
[2] A Francisco Rodrigues é comumente conhecida por abordar a temática da casa-grande e da senzala no Brasil oitocentista. Vale registrar que na dissertação de mestrado “Da transparência diáfana à opacidade densa: imagens e imaginários da coleção Francisco Rodrigues de fotografia”, defendida no ano de 2007, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE, chegamos à conclusão de que a ambiência da casa-grande divide espaço com os sobrados da cidade emergente com seu comércio bem mais diversificado do que aquele da venda de escravos e açúcar predominante nos séculos anteriores. Na imagem em análise, por exemplo, já não encontramos a arquitetura da casa-grande. Por trás dos jardins desse sobrado encontramos a cidade, ambiência tipicamente burguesa, onde a brisa do cais do porto do Recife parece soprar anunciando novos tempos.
[3] Michel Frizot descreve a importância dos cartões de visita: “(...) um novo formato fotográfico foi oferecido, a carta de visita. (Eugene-Adolphe) Disdéri surgiu com um novo tipo de retrato. Tinha o mesmo tamanho de um cartão de visita e mostrava o assunto fotografado por vezes inclinado contra uma coluna truncada ou sentado sobre uma balaustrada, chapéu na mão ou lendo um jornal. Em 1853, ele apresentou uma patente para proteger os seus direitos de qualquer inovação derivada das ‘chapas de múltiplas exposições’, um dispositivo que lhe permitia fazer uma série de diferentes negativos sobre a mesma placa de vidro. Ele apresentou uma outra patente reclamada em 27 de novembro de 1854 chamando seu invento de cartão de visita ou cartão. Graças às inovações técnicas, o preço por retrato caiu dramaticamente.” (FRIZOT, 1998: 110, tradução livre).
[4] Gilberto Freyre explica que os retratistas “(...) se encarregavam de tirar dos grandes da época ‘fielmente retratos a óleo, e a miniatura’ ” (2003: 252).
[5] Não há como se definir com exatidão a data de captação dessa imagem específica. Pode-se apenas afirmar que na Francisco Rodrigues os registros fotográficos ambientados nos espaços internos das casas e em ambiente exterior começam a se fazer presentes em artefatos das décadas de oitenta e noventa do século XIX e, sobretudo, naquelas referentes à entrada do século XX, contrastando com a grande maioria dos retratos realizados em estúdio nas décadas de 1850, 1860, 1870 e 1880.