Revista Rua


Do silêncio angustiante aos sentidos desviantes: Subversão discursiva na microesfera do exercício de poder
(Of the silent distressing to the senses deviant: Discursive subversion in the microsphere of the exercise of power)

Camila Targino e Souza, Cristina Teixeira Vieira de Melo

imaginários[6] compõem essa intrigante representação? Quais as relações de forças implicadas nessa fotografia?
Qualquer que seja a hipótese do estranhamento, o certo é que essa imagem traz, nas bordas de sua representação, uma dispersão histórica e, como é comum ocorrer nesses casos, terminou esquecida das análises de imagem produzidas no Brasil. Apesar do reconhecido empenho de muitos pesquisadores da história da fotografia brasileira[7] em sistematizar, teorizar e fazer circular as imagens produzidas em solo nacional ao longo do século XIX, esta fotografia tão impactante permaneceu absolutamente esquecida por entre as representações imagéticas do período oitocentista, e, de maneira específica, entre as demais fotografias que compõem a coleção Francisco Rodrigues. Grosso modo, priorizou-se a leitura de imagem da ama-de-leite clássica: mulher negra com criança branca no colo, atitude que reforça certa unilateralidade de sentido. Neste artigo, nosso esforço de análise é “(...) saber reconhecer os acontecimentos da história, seus abalos, suas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas, que dão conta dos atavismos e das hereditariedades (...).” (FOUCAULT, 2006: 19).
 Percebemos, de pronto, que esta fotografia desmonta uma série de sentidos estabilizados sobre o Brasil colonial, todo um “já-dito”, um “sempre-já-aí” da história “oficial”, e, concomitantemente, opõe-lhe uma história dos discursos desviantes, silenciados, subordinados, especialmente, quando desloca a figura da mulher, do negro e da criança, colocando-os em outra posição discursiva. Essa imagem, de uma forma ou de outra, instaura relações de força entre discursos de uma época, pois produz inversões de sentidos, mesmo que dispersos. Ela seria a emergência[8] de um acontecimento no campo da resistência discursiva, levando-nos a perceber, para além das normatizações


[6] Para especificar a importância das projeções imaginárias, Michel Pêcheux fala que o pré-construído produz uma espécie de “retorno do saber no pensamento”. Em seus próprios termos: “são essas relações, no interior das quais se constitui o pensável, que formam o terceiro elemento, do qual dissemos, há pouco, ser mascarado pela concepção (exclusivamente) lógico-lingüística desses mecanismos. Esse terceiro elemento constitui, estritamente falando, o objeto do presente trabalho, sob a forma de uma abordagem teórica materialista do funcionamento das representações e do pensamento nos processos discursivos. Isso supõe, como veremos, o exame da relação do sujeito com aquilo que representa; portanto, uma teoria da identificação e da eficácia material do imaginário.” (PÊUCHEUX, 1997: 125).
[7] A exemplo dos seguintes títulos: O negro na fotografia brasileira do século XIX, de Ermakoff; Fotógrafos alemães no Brasil do século XIX, de Vazques; Augusto Stahl, dedo Lago; Hercules Florence: a descoberta isolada da fotografia no Brasil, de Kossoy.
[8] “A emergência é portanto a entrada em cena das forças; é sua interrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro, cada uma com seu vigor e sua própria juventude. O que Nietzsche chama Entestehungsherd do conceito de bom não é exatamente nem a energia dos fortes nem a reação dos fracos; mas sim esta cena onde eles se distribuem uns frente aos outros, uns acima dos outros; é o espaço que os divide e se abre entre eles, o vazio através do qual eles trocam suas ameaças e sua palavras.” (FOUCAULT, 2006: 24).