Revista Rua


Arte de viver de narradoras de outro Javé chamado Guriú
Art of living of other narrators of Yahweh called Guriú

Glória Freitas

Cada um com os seus narradores, seus desejosos por falar e que vão abrindo um caminho a ser consumado ou consumido por outrem, o escriba. Minhas narradoras, não de Javé, nem de um filme, sim de Guriú, foram falando, narrando, oferecendo café doce ou tapioca com coco. Saudosas tardes com doces em pires e uma voz encantadora: “Coma o doce, minha filha!”, uma cantiga agradável de ouvir! E depois de tempos angustiantes do que fazer com todo aquele pulsar, uma escrita nasceu, vive, não quer morrer, quer falar, quer dizer sobre elas para os que delas não serviram de depoentes e nem de escribas, ou seja, os leitores deste contemporâneo ato de escrita sobre o demasiado vivido.
O dom de oferecer delícias doces era mútuo. Eu convidava os grupos ou trupes de ex-dramistas e oferecia bolo e refrigerante para ouvi-las cantar e narrar os tempos em que foram as famosas atrizes destas praias do Litoral Oeste do Ceará. Mas por mais angustiante que fosse dormir com toda intensidade escutada por todo o dia, era uma pesquisadora e um dia teria que escrever sobre uma parte de minha vida dedicada ao gesto de ouvir narrativas. Apesar da angústia de carregar um saber e não ter clareza do que fazer com ele. E uma esperança de conseguir escrever e um dia voltar mesmo para minha vida, meus desejos e para além desta condição de ouvinte de dramistas de um lugar remoto, ruas de areias sem fim, sensação de que o tempo do agora parece tempo remoto, lugar remoto e memórias longínquas. Confesso que vivemos intimamente, eu e as Dramistas!
Sobre essa escrita pode-se dizer que brotou carregando o vigor das demasiadas horas em contato com mulheres de Guriú, ex-mestras ou dramistas, nestas incansáveis tentativas de compreender uma movimentação de mais de 60 anos e de tantas vidas mediante, essencialmente, do relato do passado. Vivenciei estes bons encontros por dez anos. E também os desencontros.
Escrever foi tentar criar materialidade e sentido às falas intensas de cerca de 50 pessoas e relatos de mais de meio século, sem correr o risco de não ser fiel à confiança recebida das entrevistadas. E de esquecer o sofrimento com o que se escuta e não se sabe do que valerá ter escutado.
O que pretendi nesta jornada com as letras foi que as palavras pudessem ser justas com a existência dessas mulheres todas. E um compromisso com o não escrever sobre o indizível, mesmo que tenha sido narrado a mim. A essência da busca era ouvir os relatos de grupos de mocinhas, ex-atrizes em Guriú, em torno ou não da mestra, produzindo um saber-fazer palco, roupas, maquiagens, entoações das vozes, gingado