Revista Rua


Arte de viver de narradoras de outro Javé chamado Guriú
Art of living of other narrators of Yahweh called Guriú

Glória Freitas

momento de seus percursos se fizeram aprendizes de outras mestras e, dentre muitas, algum tempo mais tarde, apostaram as horas no desejo de serem mestras das mais novas. As dramistas fizeram da vida algo mais do que tristeza, depressão, repetição monótona de movimentos cotidianos e domésticos. Nunca foram reféns de nenhuma dominação masculina que oferecia os peixes e os esperava fritos dia após dia. Elas apostaram na alegria de dramatizar, cantar, dançar a possibilidade de momentos felizes de dramas. Parece que seguiam o palpite feliz do que de bem pode se fazer com a vida:
 
Viver e não ter a vergonha de ser feliz
Cantar a beleza de ser um eterno aprendiz
Eu sei que a vida deveria ser bem melhor e será
Mas isto não impede que eu repita
É bonita, é bonita e é bonita! [3]
          
Aprendi que as lembranças de dramistas são sempre coletivas. Otília, nascida em 1925, recitou os dramas cantados de sua infância e de outras meninas, suas companheiras queridas de ensaio e apresentação. Citava o nome dos adultos engajados nestas preparações. Lembrava-se da madrinha, a Zeza, que era a esposa do dono das terras e que foi quem ensinou a novidade dos dramas cantados. Uma ideia trazida da Capital! As apresentações de dramas em Fortaleza inspiraram uma produção local, em Guriú. Relatava esta história repleta de muita saudade e colocando-se no papel de memorialista da História da sua e de outras infâncias em um Guriú do passado. Histórias de resistências de muitas gerações de mulheres e que escreveram juntas, ou seria mais justo dizer, encenaram como protagonistas juntas?
Lins prevê que
[...] quando a memória abre às suas portas e janelas, quando se deixa contaminar por outras memórias, outras recordações, outros lugares da memória – espaços grávidos de memórias, memória-esquecimento – ela faz ressurgir como por magia os odores e os sons, uma anedota, uma piada, um objeto, uma fotografia, a voz dos personagens familiares, a lembrança de seu corpo, de seus gestos, uma paisagem de um sítio da infância, um perfume, um odor quase carnal de um bolo, uma broa de milho ou [...] “les madaleines” de Proust! Fragrância e sons: um magma de evocação que acorda os fragmentos do passado escondido e cristaliza um imaginário, jardim secreto que se torna às vezes uma crença, um ideal, um totem mumificado que, ao contrário das aparências, uma vez provocado pelo pensamento da diferença, fere como as larvas de um vulcão “adormecido” (2000, p. 9).


[3]  O que é O que é, Gonzaguinha, de 1982.