Revista Rua


Arte de viver de narradoras de outro Javé chamado Guriú
Art of living of other narrators of Yahweh called Guriú

Glória Freitas

da baiana. Impossível não registrar que muitas narrações escapam da intenção inicial e falam das dores da vida, de segredos aliviados em falas e muitos cantares.
Confesso que sofri nas solitárias horas de escolha do que fazer com a multiplicidade de falas, com o que escapulia às intenções da pesquisa e com tentativas de conexões possíveis. E tudo ia sendo resolvido com uma intensa verdade atravessando as falas das Dramistas narradoras. Suas vidas eram continuamente marcadas pela inventividade, ousadia e a juvenil febre de busca do novo. Isso, aprendi ouvindo-as. Ou, em algumas ocasiões, aprendi a arte de ouvir.
Francisca, conhecida como Pinta, dramista nos anos 1980, orientou a última geração de dramistas, que fizeram apresentações nos anos 1999, 2000 e 2001, e expressa este intenso movimento em constante devir[1]:
 
Agora, para o meu tempo, que eu ensinei, elas são bem diferentes, porque as músicas velhas vão ficando e vão aparecendo outras músicas novas. O passo da dança não é igual, tem muitas que são iguais, mas outras que não são. Naquele tempo não tinha negócio de samba, de se rebolar muito, tinham as baianas, mas era uma coisa mais antiga. Até as vestes, as sainhas eram uma coisa mais chique, mais coberta. No meu tempo, e no tempo da Princesa, já eram umas coisinhas mais nuas, aí acho que tem mais diferença, naquele tempo não existia samba, não se rebolava muito. Quando ensinei a Princesa, o passo já não era igual ao passo da baiana do tempo antigo. A gente fazia vários passos, vários passos que a gente dançava. Aqueles que a gente achava melhor eu ensinava a elas e, se elas gostassem de dançar daquele jeito, elas aprendiam. Princesa aprendeu um passo novo agora de samba, de sambar, porque naquele tempo não existia isso. Elas chegavam pra gente e mandavam a gente cantar as músicas que sabíamos. Aquelas que elas achavam mais bonitas eram as que elas iriam cantar, aprender para cantar. Elas que escolhiam.[2]
 
Tive que lutar contra a minha inicial inclinação em encontrar uma base comum, folclórica, algo de cultura popular e tradicional, autóctone, frondosa árvore de raízes firmes e imutáveis. Estou interessada em esclarecer que não


[1] Engajo o fazer das Dramistas em uma escolha nômade de existir. E sugiro que elas agiam em um movimento onde tudo acontece “por desterritorialização/territorialização, tudo opera, como nos sites, os espaços da mostração, de apresentação do visual. Há deformação, mudança da estrutura, partida para outras estradas, novas peles, sempre para as mutações, para o por vir. É o devir-criança inserido no coração do rizoma, o contrário, pois da árvore: as estruturas arborescentes têm saudades do passado, são atraídas pelo cemitério, pelo pensamento-túmulo; o rizoma sente saudade do futuro, ele é linha-artista por excelência”. (LINS, 2005, p. 1246).
 
[2] Entre os anos de 1996 até 2006 vivenciei longo período de inserções investigativas em Guriú, ouvindo as narrativas de vida e suscitando um processo intenso de escuta das memórias de mais de 50 mulheres sobre a experiência estética dos dramas cantados. Elas esclareciam sobre um passado em palcos montáveis e fabricados em um trabalho coletivo demasiadamente animado e inesquecível para elas e para o público. Muitas falas são esclarecedoras do fazer estético em 60 anos de grupos diversos de dramistas e aparecem aqui neste artigo para exemplificar a rica experiência teatral deste recanto isolado do litoral cearense.