Revista Rua


Arte de viver de narradoras de outro Javé chamado Guriú
Art of living of other narrators of Yahweh called Guriú

Glória Freitas

dependentes da memória outra vez para saber cantar... deixa para lá, pois parece até que tudo começou outra vez e estão ouvindo pelas primeiras vezes as comédias de drama... para decorar, para encenar, para envolver o público, seduzir o público masculino, vender para eles suas faixas e arrumar namorado e talvez marido.
Falar assim do en-canto do cantar (do encantar) de diferentes gerações é sempre um risco para qualquer viajante. Isso acontece também a Ulisses. O fato é que as sereias, em oceanos indeterminados e gerações sem fim teimam em cantar e um dia desses... e já se passaram quase dez anos eu fui levada a ouvir este canto de Menina dramista ou ex-dramista que virou mestra e ele se reproduziu em mais cinquenta outros tons vindos das lembranças de outras dramistas.
O fato é que tive que em determinados instantes largar o resto e deitada no tucum, ouvir e aprender o cantar de ex-dramistas. Ao sabor das marés e das luas, pois nem sempre queriam falar. Deslizando pela areia fina de Guriú tive que obedecer ao desejo de ex-atrizes e isso significou ter a paciência de esperar o dia e a hora que decidiriam ou não falar.
O vínculo principal foi este mesmo: elas cantavam quando queriam e eu escutava. Acreditaram, em maioria suma, que eu queria mesmo era saber do cantar das comédias de drama. Umas começavam imediatamente a cantar, outras adiavam o oferecimento e outras simplesmente diziam um absoluto não. Uma delas foi proibida pelo marido. Ele decretou que ia pescar e que ela ia ver o que iria acontecer caso desse depoimento.
Aos poucos, porém, fui negociando os meus interesses. Queria entender a dimensão afetiva deste passado, as artimanhas necessárias para se fazer dramista e por que alguém resolvia um dia ser mestre. E assim, deitada no tucum e tendo os ouvidos como guia, passaram-se dez anos. Escrever foi a experiência possível de uma inusitada intenção de representar com palavras um pouco do tudo o que ouvi e de tantas experiências significativas auxiliadas pela memória. Imaginem o que do essencial ouvido voltou ao esquecimento.
Rosa Carvalho falava em livro, a única a denominar um lugar para além do ouvir alguém cantar e aprender a ser dramista, ouvindo. O que faz lembrar a Fransquinha do Cigano, que nasceu em 1963, dizer: “Não sei quem foi que inventou antigamente esses dramas. Eu não sei se era coisa passada ou se tinha livro que aprendia”.
Rosa precisou fazer um livro para ser mestra e a única mestra que nunca foi dramista. As demais aprendiam oralmente. O livro era um caderno cheio de letras...