Revista Rua


Diante da Lei.. aflição e aprisionamento ao processo
Before the Law... affliction and imprisonment to the process

Carme Regina Schons e Lucas Frederico Andrade de Paula

Algumas palavras introdutórias
Tratamos, neste estudo, dos processos discursivos[1] que circularam em dois momentos cronológicos distintos, referentes ao mesmo tema: a inacessibilidade do cidadão comum à justiça. Ao aproximarmos os dois textos, cronologicamente distantes, pretendemos analisar o entrelaçamento de saberes entre ambos. O primeiro, do gênero narrativo ficcional, o conto de Franz Kafka “Diante da Lei” (recorte1), apresentado em cinco sequências discursivas. O segundo, um texto não-ficcional, uma notícia do jornal EstadãoPreso por engano ganha ação e morre” (recorte2), apresentado em três sequências discursivas.
Se, no conto de Kafka, a palavra justiça produz sentimento de desconfiança, pois ela pode ser uma armadilha da instituição e daqueles que criam obstáculos ao desenvolvimento humano; na notícia, os mesmos obstáculos são estímulos à sobrevivência dos condenados e também motivo de descrença de quem aguarda por ela, porque quem aguarda uma sentença crime, acaba cumprindo uma espécie de pena pela demora e por todas as outras consequências dela advindas.
Em Kafka, o indivíduo só tem acesso à justiça por meio da polícia, do acusador ou do juiz que o condena. Nesse caso, o sistema judicial tem seus mecanismos de controle em diferentes instâncias. O desconhecimento da lei torna-se o principal obstáculo para que haja acesso à justiça, ocasionando diferentes formas de exercício de poder, como “punição exemplar” (abuso de autoridade), morosidade dos processos, esquecimento e até a morte social.
Isso nos conduz a pensar e avaliar as relações de produção-transformação das práticas discursivas, se há uma desidentificação de uma forma-sujeito[2] e em que medida ela ocorre, tendo em vista que o autor apresenta uma questão relacionada ao sujeito que busca proteção da justiça: o próprio aprisionamento a ela. Para ilustrar que o gênero ficcional conto permite diferentes gestos de interpretação, com base no referencial teórico da Análise de Discurso, traçamos um paralelo entre tal gênero e uma notícia do jornal Estadão sobre o modo como os brasileiros obtêm acesso à justiça.


[1] Pêcheux e Fuchs (1997, p. 181) definem processo discursivo como o resultado da relação regulada de objetos discursivos correspondentes a superfícies linguísticas que derivam, elas mesmas, de condições de produção estáveis e homogêneas. Esse acesso ao processo discursivo é obtido por uma de-sintagmatização que incide na zona de ilusão-esquecimento nº1. Portanto, o processo discursivo consiste no sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias etc., que funcionam entre elementos linguísticos em uma formação discursiva dada.
[2]Para Pêcheux (1995), a forma-sujeito preenche o lugar do sujeito e organiza o saber de dada formação discursiva. Segundo o autor, a forma-sujeito constitui a relação de identificação entre o sujeito enunciador e o sujeito do saber, ela é fragmentada em virtude das diferentes posições e disso resultam os diferentes   efeitos-sujeito no discurso de cada um.