Revista Rua


Diante da Lei.. aflição e aprisionamento ao processo
Before the Law... affliction and imprisonment to the process

Carme Regina Schons e Lucas Frederico Andrade de Paula

Ao introduzir, no conto, como personagem um guarda que cuida da lei, o autor conduz a concepção de lei em sua representatividade literária, a partir de uma verossimilhança com o universo jurídico, em que a lei precisa ser “respeitada” – nesse caso, guardada, sem acesso livre. Podemos entender a concepção de lei na verticalidade do interdiscurso, de forma a criar um pressuposto semântico que remete à questão das normas do Estado. O conto nos mostra, já no seu início, a separação da lei do homem comum – configurado no gênero pelo camponês. Destacamos, abaixo, a primeira sequência discursiva referente às instâncias que envolvem o sistema.
 
(01) Diante da Lei há um guarda. Um camponês apresenta-se diante deste guarda, e solicita que lhe permita entrar na Lei. Mas o guarda responde que por enquanto não pode deixá-lo entrar. O homem reflete, e pergunta se mais tarde o deixarão entrar.
- É possível – diz o porteiro -, mas não agora. (KAFKA, 1965, p. 71)
 
O personagem camponês é uma construção imaginária do cidadão que não se submete à autoridade, à lei e ao Estado, mas, contraditoriamente, sofre coerção destes. Trata-se de um processo de contra-identificação entre o sujeito enunciador e a forma-sujeito da formação discursiva jurídica. A essa modalidade Pêcheux (1995) dá o nome de mau sujeito, por ele assumir uma tomada de posição “de dúvida, contestação, revolta, questionamento, distanciamento em relação ao que sua formação discursiva lhe impõe”, ou seja, o fato de o camponês apresentar-se diante do guarda e “solicitar que lhe permita entrar na Lei”, coloca em evidência que, para ele, o acesso a Lei não é para todos. No entanto, algo absurdo está refletido na postura do guarda que responde: “por enquanto não pode deixá-lo entrar”. É possível afirmar que a conduta do guarda reproduz a ideologia dominante. Para Althusser (1985, p. 68-70), as instituições são os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE religioso, escolar, familiar, jurídico) que funcionam especialmente pela ideologia, mas também pela violência simbólica. Por outro lado, “a resistência das classes exploradas pode encontrar o meio e a ocasião de expressar-se neles, utilizando as contradições existentes ou conquistando pela luta posições de combate” (ALTHUSSER, 1985, p. 72). Resistência é o que o camponês apresenta diante da resposta do guarda. Na marca linguística “por enquanto”, entra um componente temporal que, embora não defina o tempo que o sujeito deverá esperar, gera uma promessa, uma possibilidade de transposição da porta da justiça. Contraditoriamente, a mesma marca denuncia a posição ideológica em que o sujeito da institucional se inscreve. Cabe ressaltar que, segundo Pêcheux (1997, p. 160), “o sentido