Revista Rua


Diante da Lei.. aflição e aprisionamento ao processo
Before the Law... affliction and imprisonment to the process

Carme Regina Schons e Lucas Frederico Andrade de Paula

Nesta sequência, é possível identificar algumas marcas que representam o imaginário da ideologia que determina o guarda que, além de cumprir sua função, faz perguntas indiferentes ao camponês, como fazem os grandes senhores. O guarda representa o dominante diante do dominado, do homem comum. A relação de poder, que é estabelecida desde o início, configura-se não só no posicionamento do guarda que interpela o camponês em sua situação, mas ainda na aceitação dos pertences que o camponês levara para a viagem. O guarda encara os esforços do camponês como algo necessário a sua índole de homem simples, e aceita o suborno como uma espécie de favor ao camponês, para este não pensar que deixou de fazer tudo o que devia nas inúmeras tentativas de entrada.
Conforme ilustram “breves palestras”, “perguntas indiferentes, como as dos grandes senhores” e “sempre lhe repete que ainda não pode deixá-lo entrar”, permitem-nos pensar o judiciário como uma instância de abuso de poder, nas relações de dominação e pelas diferentes técnicas de sujeição (nos termos de Foucault) e o sistema carcerário (policial) como aparelho repressor do Estado (nos termos de Althusser). Há, ainda, em “perguntas indiferentes, como as dos grandes senhores” posições ideológicas contraditórias de sujeito no interior da formação discursiva. O sujeito do discurso identifica-se com os saberes da FD antagônica à FD jurídica, à medida que aciona uma memória no “fio-do-discurso”. Não são mais os grandes senhores (juiz, delegado, inspetor) que fazem perguntas indiferentes, mas o guarda.   Com referência ao efeito de pergunta-resposta, Schons (2008) afirma que:
 
 
a organização discursiva pergunta-resposta simula um diálogo (...) e pressupõe aproximação (...) e visa tornar homogêneas falas antagônicas (...) que encobre diferenças e antagonismo entre Estado e cidadão. Esse efeito faz perceber como transparente aquilo que, de fato, se apaga e se encobre, no caso as posições conflitantes, ou seja, as palavras recebem sentidos de formações antagônicas postas em relação, mas que se atenuam na dominância de saberes da FD estatal. (SCHONS, 2008, p.192)
 
Prossegue a citada autora: “a estrutura pergunta-resposta (re)arranja a organização das classes, (re)distribuindo os lugares no novo contexto histórico social” e “na medida em que se cumprem os deveres para com a pátria, se assegura a sujeição constante de forças, numa relação de docilidade-utilidade” (idem). Embora esta estrutura não esteja marcada no intradiscurso, ficam, no conto, expostas as posições-sujeito antagônicas, o teor inquisitório da entrevista e a busca pela “docilidade” do camponês. Vale ressaltar que a instituição (na figura do guarda) procura assegurar a sujeição do camponês à lei. E pior: dissimula a perversão interposta na imagem do carrasco, que faz mediação entre o sujeito-Estado e o sujeito submetido a ele.