Revista Rua


Diante da Lei.. aflição e aprisionamento ao processo
Before the Law... affliction and imprisonment to the process

Carme Regina Schons e Lucas Frederico Andrade de Paula

de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe ‘em si mesmo’, mas é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é reproduzidas)”. Nesse sentido, o camponês entrará na lei se ou quando o guarda deixar. Ideologicamente, toda prática repressiva representa correlação de forças.
O conjunto de saberes que estão relacionados à lei e ao guarda retoma antigas questões do Estado versus sua população. O personagem camponês, tentando entrar na lei, desvela a temática proposta pelo conto literário. Arma uma encenação que, além de construir o enredo argumentativo que norteia a narrativa, levanta a questão do social diante da casa da lei. Uma espécie de enfrentamento pacífico em que, como há a ideia de possibilidade, há tentativas do camponês para conseguir entrar. Vejamos o exemplo da segunda sequência discursiva:
 
(02) O camponês não havia previsto estas dificuldades; a Lei deveria ser sempre acessívelpara todos, pensa ele, masao observar o guarda, com seu abrigo de peles, seu nariz grande e como de águia, sua barba longa de tártaro, rala e negra, resolve que mais lhe convém esperar. (KAFKA, 1965, p. 71)
 
Consideremos que na sequência (02), “com seu abrigo de peles, seu nariz grande e como de águia, sua barba longa de tártaro, rala e negra, que está expressa uma rejeição a práticas coercitivas do Estado. Além do enunciado: “deveria ser sempre acessívelpara todos” expor a “tomada de consciência” do camponês, expõe também sua “tomada de posição”, já que questiona o modo como o Estado se utiliza da lei e a protege. Dessa forma, características do guardião da lei, como “nariz grande e como de águia”, “barba longa de tártaro, rala e negra” designam, na formação discursiva Jurídica, um conjunto de elementos pré-construídos incorporados (do seu exterior) que pertencem a outra formação discursiva (dos contos de fada, mas que pertencem ao domínio de saber do cristianismo que, na figura inquisitória do executor, exerce o castigo a quem ousa questionar/negar o sagrado). É a figura do carrasco, que se interpõe para aquele sujeito à lei.
Na sequência discursiva (2), o autor nos esclarece o que pensa o camponês sobre a lei. A ideia de acessibilidade ao local que guarda a lei, entendida previamente pelo camponês como algo certo, é derrubada pelo guarda após a intervenção feita por este na entrada, neste caso, o imprevisto torna-se obstáculo para o personagem, que deve esperar até que a lei, protegida pelo guarda, possa ser alcançada. “O guarda dá-lhe um banquinho e permite-lhe sentar-se lado da porta. Ali espera dias e anos. Tenta infinitas vezes entrar, e cansa ao guarda com suas súplicas” (KAFKA, 1965, p.71).