Revista Rua


Diante da Lei.. aflição e aprisionamento ao processo
Before the Law... affliction and imprisonment to the process

Carme Regina Schons e Lucas Frederico Andrade de Paula

O discurso-transverso revela seu atravessamento no cruzamento de discursos. Os saberes que configuram a concepção de camponês, sobre a lei e a guarda, juntamente com os primeiros enunciados da notícia, em que preso por engano ganha ação e morre, depois de 19 anos na cadeia, unem-se na discursividade.  Esse conjunto de saberes que conduz a compreensão textual do conto literário se faz presente nas informações expostas pela notícia contemporânea. Já algumas marcas do interdiscurso entre as materialidades (intradiscurso) funcionam na discursividade de ambos os recortes.
Ao final deste artigo, não podemos deixar de retomar, embora de modo breve, o que nos remete a um mesmo imaginário sobre a saída para os sujeitos injustiçados nos dois gêneros analisados (no discurso literário e no discurso jornalístico): a porta e a sua inacessibilidade, entrada e saída. Se fôssemos buscar uma definição nos dias de hoje, eis que deveríamos incluir um novo acontecimento: “A saída (e ou a entrada) era só uma e o medo vinha de todos os lados e a justiça vem de onde?”
Este novo enunciado, resultante de uma projeção ligada a imagens dos sujeitos afetados pelos efeitos do incêndio ocorrido na boate Kiss[4], no dia 26 de janeiro de 2013, retém traços, vestígios, do conto kafkiano. No conto de Kafka, como a porta simbolicamente irradia luz (entrada/saída), nos possibilita gestos de interpretação de processos discursivos, tais como o de analisar a contradição que persiste na relação entre a acessibilidade e o objeto de desejo (lei). No texto jornalístico, a diferença entre o que se constrói imaginariamente e o que ocorre nas práticas sociais reforça os efeitos da força exercida sobre o sujeito por instituições como o Estado e a Igreja, por exemplo. Reforça ainda os prejuízos que o sujeito sofre quando espera anos por justiça. A morosidade do judiciário, além da aflição, é o próprio aprisionamento. Destacamos, contudo, que os diferentes modos de acesso à justiça podem determinar as condições de reconhecimento dos direitos. Observamos que a insistência e a busca por justiça, por proteção da lei, no conto kafkiano, conforme formula Pêcheux, fazem emergir nos espaços da narrativa um sujeito ensimesmado que resiste à interdição dos Aparelhos Repressores do Estado – no caso, o judiciário, o sistema carcerário e o policial. O sujeito da narrativa jornalística, por sua vez, à moda da ideologia cristã em que a “justiça tarda, mas não falha”, conquista o reconhecimento de seu direito e a correção de


[4]  O incêndio na discoteca Kiss, localizada em Santa Maria, RS, matou 241 pessoas e feriu outras 123. A tragédia ocorreu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. De acordo com sobreviventes, o incêndio teve início quando um membro da banda que tocava na boate começou um show pirotécnico com um sinalizador, colocando fogo em parte do palco. Muitas vítimas tentaram sair pelas portas dos banheiros, acreditando que eram portas de emergência, mas a boate tinha somente uma porta. Trata-se do segundo maior incêndio do Brasil em número de vítimas.