Revista Rua


Diante da Lei.. aflição e aprisionamento ao processo
Before the Law... affliction and imprisonment to the process

Carme Regina Schons e Lucas Frederico Andrade de Paula

Cabe pontuar que, nessa questão de correlação de forças entre Estado e cidadão, as relações de contradição, de aliança e de antagonismo não são estáticas. Elas se caracterizam, de modo geral, pelos jogos de interesses de classe (ideológico) e de interesses intelectuais. No caso do conto de Kafka, a existência de elementos pré-construídos de domínios de saber institucional (Judiciário e Igreja) vem marcada no corpo da justiça criminal e no corpo social (indivíduo/camponês). Já sequência (04) descreve a espera do camponês que, após longos anos, vê o guarda como seu único obstáculo para entrar na lei.
 
(4) Finalmente, sua vista enfraquece-se, e já não sabe se realmente há menos luz, ou se apenas o enganam seus olhos. Mas em meio da obscuridade distingue um resplendor, que surge inextinguível da porta da Lei. Já lhe resta pouco tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências desses longos anos se confundem em sua mente em uma só pergunta, que até agora não formou. (KAFKA, 1965, p. 71)
 
A sequência mostra questões importantes, como a saúde do camponês que vai ficando debilitada, uma vez que estava atrelada ao tempo de espera do camponês; enquanto ele apenas cumpria seu papel de cidadão, de homem comum que espera sua hora de entrar na lei. Ou seja, por obedecer à ordem do guarda, que também cumpre seu papel de subordinação estatal para guardar a lei, vão surgindo no corpo dele marcas da ação da justiça criminal. “Sua vista enfraquece-se, e já não sabe se realmente há menos luz, ou se apenas o enganam seus olhos (...). Já lhe resta pouco tempo de vida (...) todas as experiências desses longos anos se confundem em sua mente em uma só pergunta, que até agora não formou”. Dessa forma, a pergunta ainda não formulada pelo camponês, também pertence ao absurdo literário do universo kafkiano e funciona aqui como o desfecho de uma história trágica que narra a relação do sujeito com a lei, e mostra sua forma de resistência ao sistema vigente. No exemplo da Sd 5, é possível ilustrar outro modo de resistência, ou seja, a resistência em relação aos efeitos do aparelho repressor de Estado.
 
(5) Faz sinais ao guarda para que se aproxime, já que o rigor da morte endurece seu corpo. O guarda vê-se obrigado a baixar-se muito para falar com ele, porque a disparidade de estaturas entre ambos aumentou bastante com o tempo, para detrimento do camponês.
- Que queres saber agora? – pergunta o guarda – És insaciável.
- Todos se esforçam por chegar à Lei – diz o homem -; como é possível então que durante tantos anos ninguém mais do que eu pretendesse entrar?
O guarda compreende que o homem está para morrer, e para que seus desfalecentes sentidos percebam suas palavras, diz-lhe junto ao ouvido com voz atroadora:
- Ninguém podia pretender isso, porque esta entrada era somente para ti. Agora vou fechá-la. (KAFKA, 1965, p. 71)