Revista Rua


Diante da Lei.. aflição e aprisionamento ao processo
Before the Law... affliction and imprisonment to the process

Carme Regina Schons e Lucas Frederico Andrade de Paula

As marcas da violência dos aparelhos repressores de Estado – o judiciário e o policial -, sobre o sujeito vão além das físicas. Desse modo, no enunciado “Contraiu tuberculose e ficou cego ao ser atingido por estilhaços de bomba de gás lacrimogêneo jogada pelo Batalhão de Choque da Polícia Militar”, observamos não só o modo como funciona a obrigação legal da lei, mas as técnicas utilizadas pelos aparelhos repressores do Estado para impor a sujeição e como estas funcionam no interior do corpo social. A punição é um modo de atingir os copos. O corpo doente e enfraquecido, por outro lado, mostra o quão enfraquecido encontra-se o sistema policial, pois o que o tornaria forte (o controle do corpo) passa a atacá-lo; expõe fragilidades do sistema carcerário, como a superlotação. É preciso destacar que tanto o sujeito da Sd 4 que tem “sua vista enfraquecida” e o sujeito da Sd 8 que, além de ficar cego, contrair tuberculose e “nem tem crédito algum” são amplamente prejudicados pelo tempo de espera por justiça, mas também expõe o modo como é atacado. As sequências mostram os efeitos danosos da morosidade do judiciário, que exerce sobre o cidadão uma obstinada busca de aprisionamento.
A escolha da notícia como recorte de análise está relacionada ao gesto de interpretação que atualiza a ficção de Kafka nas informações relatadas no jornal. A partir disso, entendemos que um texto ressoa no outro. O interdiscurso possibilita o reconhecimento de um discurso-outro. “A memória discursiva, em AD, é definida como aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os pré-construídos, os elementos citados e relatados, os discursos-transversos, etc”, como lembra Cazarin (2006, p. 303).
Para o estudo da AD, não é a “memória individual” que configura um objeto de análise, mas a memória discursiva, que restabelece pré-construídos e atualiza possíveis interpretações, a partir de significados gerados pela engrenagem simbólica em que o sujeito está inserido. Para Pêcheux (1999), o discurso não é independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos quais ele irrompe. Em outras palavras, todo discurso se realiza sempre numa série de outros discursos e articula linguagem e práticas históricas. Segundo o referido autor, “a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível, (p. 52).