Revista Rua


Imagens da/na contemporaneidade: um convite à análise, uma convocação à teoria
Images of/in the contemporaneity: an invitation to analysis, a convocation to theory

Rejane Arce Vargas, Caciane Souza de Medeiros, Maurício Beck

seja, a língua assume um simulacro de corpo, enquanto representação de um impossível (o de inscrição material do corpo/emoção na língua, o que concerne mesmo ao impossível, desvão onde irrompe o real da língua e do sujeito – possibilidade de criação/subjetivação, para a autora). De modo semelhante, acreditamos que a leitura/interpretação nesse espaço volátil possa ser pensada de outras formas, uma vez que o arranjo de sentidos se dá na dispersão e não se apresenta como uma unidade imaginária, como um texto, por exemplo. Os discursos na materialidade digital reclamam olhares que considerem condições de produção específicas que poderíamos chamar de “tecnológicas” que, entre outras coisas, passam por uma “montagem/desmontagem” de trajetos de leitura. Mecanismos de pesquisa [que já apresentam uma leitura] (como Google) e de linkagem de textos têm papel decisivo nesses novos processos de leitura/pesquisa/escritura, e não circunscrevem um trajeto linear: pelas buscas, a leitura/interpretação se apresenta no eixo paradigmático (várias possíveis); nos links, por sua vez, ao modo rizomático, de redes que podem vir a ter um percurso da ordem do irrepetível.
Acreditamos que seja exatamente nesses meandros, nesses espaços descontínuos, o lugar da memória discursiva (COURTINE, 2005), pois não há texto ou discurso que sejam interpretáveis sem referência a uma memória, na medida em que se inscrevem em uma rede complexa de imagens internas e externas ao sujeito, formando uma “intericonicidade”, característica do funcionamento dos discursos, enquanto estabelecimento de relações entre memória social e memória subjetiva, interpretável mediante o jogo de filiações. Tal jogo de filiações hoje comporta uma fabricação metálica. Recursos tecnológicos, Photoshop, coisas “fora do lugar”, pincelas de coisas que “não estavam ali” ou dali foram sub-repticiamente tiradas. Vivemos no cenário do chapéu de Clémentis (COURTINE, 1999)[16] em grau máximo ou mesmo em grau zero de historicidade, ou ainda de uma historioprodução, uma memória metálica[17] (cf. ORLANDI, 2004) que agencia sentidos, sujeitos, política - a vida.


[16] Courtine (1999), no texto O chapéu de Clémentis: Observações sobre a memória e o esquecimento na enunciação do discurso político, reporta-se ao fato de que, em 1948, em Praga, em meio a um cenário gélido, o líder comunista Klement Gottwald fazia um pronunciamento público, na sacada de um palácio, quando um de seus camaradas, Vladimir Clémentis, solícito, empresta seu boné de pele a Gottwald; essa imagem entra em circulação de modo a ser reconhecida (lembrada). Quatro anos mais tarde, Clémentis é considerado traidor e condenado à forca. Ele então “se dilui” das fotos, desaparece, mas seu boné permanece em Gottwald (fato detalhado na obra de Milan Kundera, O livro do riso e do esquecimento).
[17] Memória metálica é aquela que “não falha e que se apresenta como ilimitada em sua extensão, só produz o mesmo, em sua variação, em suas combinatórias” (ORLANDI, 2004, p. 15-16).