Revista Rua


Espaços urbanos como arenas de (trans)formações identitárias na literatura contemporânea
Urban spaces as arenas of identity (trans)formations in contemporary literature

Ricardo Sobreira

com as condições existentes na contemporaneidade e manifestam uma preferência por uma miragem de uma América mais “natural”. O problema com essa mirada nostálgica, Shepard nos mostra, reside no fato de ela se constituir em uma espécie de desejo paradoxal por uma determinada imagem de nação, que provavelmente jamais existiu, a não ser em romances e filmes Western ou, conforme nota Görmez, em subgêneros televisivos como propagandas do cigarro Marlboro (2007, p.142).
Como assinala King (1988), algumas produções artísticas de Shepard são marcadas por fusões espúrias entre elementos contrastantes como, por exemplo, a coexistência simultânea de duas ou mais temporalidades distintas em uma mesma cena ou narrativa (p.ix). Esse também é o caso de textos em que convivem em um mesmo espaço-tempo duas “metades” ou duas ou mais “versões” da mesma personagem (DEMASTES, 1987, p.237-241). Embora de maneira menos experimental que peças como True West e Buried Child, podemos dizer que o deslocamento empreendido pelo protagonista de “Coalinga 1/2 Way”, conforme veremos, abrange temporalidades distintas dentro do “mesmo” dia, bem como fragmenta a ideia de sujeito inteiro em função de uma justaposição de diferentes posições de sujeito fluidas da mesma personagem.
Desse modo, devemos ler a trajetória do protagonista de “Coalinga 1/2 Way” como uma alegoria do processo de fragmentação do sujeito centrado. Por essa razão, devemos pôr a questão da temporalidade do conto entre parênteses e, de maneira provisória, presumir que esse deslocamento também se dá ao longo de um processo histórico e cultural que perpassa toda a modernidade, chegando à concepção pós-moderna de sujeito.
Podemos distinguir no conto de Shepard três perspectivas distintas do mesmo sujeito, que coincidem não apenas com as três localidades por onde este transita, mas também com os três modelos de identitários de Hall (1992) discutidos na primeira seção. A análise a seguir tentará identificar essa tripla perspectiva a partir do estudo de aspectos dos três diferentes tempos e espaços que compõem a narrativa: i) um mês antes da separação, o protagonista encontra-se próximo do lar; ii) durante a fuga, em uma parada na região de Coalinga; iii) ao final da fuga, perambulando pelas ruas de Los Angeles.
(i) Inicialmente, o narrador nos remete, por meio de uma digressão, a um momento, que, embora narrado na metade do conto, antecede o início propriamente dito da narração. Nesse estágio, pressupomos que o sujeito ainda se perceba como um